quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Divina conduta


A igreja ficava logo ali. Praticamente ao lado dela, morava o padre Landinho, bem instalado em sua casa paroquial. Fiquei intrigada quando percebi que o muro de sua residência, outrora baixinho e vulnerável, havia crescido horizontalmente tão rápido quanto fora levantado. Conclui que nem os pastores de Cristo estão livres dos meliantes, cuja ousadia subverte até a certeza de uma proteção especial. O temor a Deus operava milagres!


Padre Landinho deve ter chegado à triste constatação de que, no fundo, era igual a você ou a mim: um pobre mortal, morrendo de medo de assaltos ou, quem sabe, desejoso de se ver livre das carpideiras de plantão que resolvessem aparecer, justo na hora de sua sesta. Num átimo, caí na real. O tal muro lhe garantiria, isso sim, a certeza da invisibilidade e ouvidos moucos para o toque da campainha.


O padre era reverenciado pela comunidade beata, que o achava simplesmente o máximo. Um santo homem, diziam as mais fervorosas. Em sua aparente simplicidade, ocultava discreta tendência à arrogância: um modo peculiar de ser. Minha filha fazia parte do rol das encantadas por ele. Fiel ovelha de Cristo, ela deve ter intuído que quantidade era sinal de qualidade. Colocou mãos à obra: participava ativamente dos programas da comunidade freqüentando asilos, grupo de jovens, recolhendo o dízimo e emprestando sua voz ao coral infantil. Não se sentia nem um pouco envergonhada pelo fato de ser a mais velha entre eles. Seu lema era “ser útil”.


Não sei dizer sobre os horários das missas. Carola tinha uma vida muito cheia durante a semana. Eu levava o cronograma de suas terapias com o máximo rigor, rezando para que o fim de semana chegasse rapidamente. O sábado e o domingo eram meu atalho perfeito para o descanso tão desejado. Para ela, significavam uma pausa na pesada rotina; a alegria de uma liberdade vigiada. A igreja acabou se tornando o veículo mais apropriado para estimular sua ainda limitada independência. Apesar de toda a insegurança que cercava aquela ação de ir e vir, concluímos que o risco calculado seria sempre alguma coisa a mais para lidar. A vida exigiria dela atitudes e mobilização ao longo do tempo.


Ficamos atônitos e tremendamente decepcionados quando a Carola, aos prantos, nos chegou com a informação de que Padre Landinho havia lhe dado um ultimato: se quisesse mesmo freqüentar a missa, que fizesse uma escolha. A do sábado ou a de domingo - jamais as duas. Conheço bem a filha que tenho. Ela poderia estar perturbando o andamento do ritual, distraindo os fiéis ou, quem sabe, monopolizando sua atenção.


Tinha me decidido pelo caminho da menor resistência – resolvi ser magnânima com ele, mas achei que valia a pena gastar algum tempo numa ponderação minuciosa sobre aquele episódio:


- Teria sido aquela decisão um dever atribuído à sua condição de sacerdote?


- Para onde foram relegados os direitos do cidadão e, mais especificamente, dos fiéis que participavam da comunidade de forma tão ativa?


- Qual seria o conteúdo de uma desculpa que explicasse tamanha arbitrariedade?


- Como utilizar-se da prática do serviço religioso no desenvolvimento da complacência, em lugar da intolerância e da indiferença?


Talvez fosse interessante lembrar-se de que o ato caridoso faz sempre uma interface com os sentimentos positivos. De quebra, teria a oportunidade de se questionar sobre os aspectos importantes de sua missão: serviço, caridade e amor.


Fiquei pensando se Padre Landinho estaria certo de sua escolha pelo sacerdócio quando, de repente, me veio a imagem do muro que ele mandara levantar.


Assustado com a repercussão dos fatos, Deus que tudo vê, seria pródigo e veloz ao enviar seu mensageiro. A ele caberia a responsabilidade de explicar ao pobre sacerdote sobre o difícil, porém necessário expediente de se construir pontes, e de como elas costumam diminuir as distâncias.


Relaxei logo depois, concluindo que, afinal, padre Landinho já devia ter chegado à triste constatação de que, no fundo, ele era igual a você ou a mim: um pobre mortal!

sábado, 6 de outubro de 2007

Enfim, para a minha surpresa (3/3)

Não fui capaz de perceber qualquer tipo de dúvida, medo ou negativa de sua parte. Parecia que só eu temia, que só eu achava que algo estava prestes a acontecer. Despedimo-nos com um beijo.

Voltei para casa tensa e exausta. Chorei até a hora de buscá-la na escola. Insisti num pouquinho a mais de corretivo, blush e batom. O rosto deveria estar perfeito e as faces, levemente ruborizadas. Assim, eu ficaria com um ar de saúde e satisfação – que estava longe de sentir.

O sol começava a sumir quando estacionei, esperando pacientemente pelo final das aulas. Imaginava a frustração estampada em seu rosto e temi que ela não quisesse voltar no dia seguinte. Reconsiderei, quando me dei conta do sorriso que iluminava seu rostinho e do caminhar firme em minha direção.

- Oi, filha! Tudo bem com você?

- Tudo, mãe.

Arrisquei, com certo desconforto:

- O que você achou da escola? Estava aqui olhando os seus colegas e fiquei impressionada. Como eles são comprometidos!

E ela:

- É. São mesmo. Mas eles também são umas gracinhas, mãe. Me adoraram. Conversaram bastante comigo e são muito carinhosos.

- Engraçado. Achei-os muito piores do que você. Todos eles conseguem conversar?

- Claro que não, mãe! Tem uma menina que nem fala nada, coitadinha. Ela puxa os cabelos e grita, mas não sai do lugar. Só melhora quando alguém a acalma e solta suas mãos do cabelo.

Eu continuava escutando:

- Também tem um rapazinho lindo, que passa o tempo todo de pé. A carinha dele é fofa e ele está sempre sorridente. E os três downzinhos, então? Ficaram grudados em mim o tempo todo.

- É mesmo?

- É! E tem a Mariana, que não escuta nada, então ninguém fica com ela, tadinha. Sentei do seu lado e fiquei segurando sua mão. Ela adorou. Aí, as professoras colocaram uma música pra gente e eu resolvi tirar os meninos pra dançar. Eles acharam o máximo e querem mais amanhã. Vou levar meus CD’s.

Senti um leve arrepio no cocuruto, e disse:

- Ô, filha, eu estou tão preocupada... Será mesmo que essa escola vai ser boa pra você?

- Claro que vai, mãe. Eu não sei por que você está tão preocupada. Eu estou adorando! Afinal de contas, mãe, eu estou no meu ambiente. Pensa bem nisso.

Naquela noite, eu dormi agradecendo a Deus, que se apiedara de mim com a mensagem que eu aguardava com tanta urgência.

Amém!

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

...e continua a paranóia! (2/3)

Diante de mim, rapazes e moças exibiam sem pudor suas dificuldades e, em maior ou menor grau, a sua dependência de terceiros. Mesmo assim, os que podiam misturavam-se aos outros alegremente, trocando brincadeiras inofensivas. Instintivamente, comecei a compará-los com a Carola. Tive a certeza de que ela estava em melhores condições do que qualquer um deles.

Fiquei me perguntando se aquele era, realmente, o lugar onde eu gostaria de deixá-la. A impressão era a de que todo o meu esforço, perseguindo metas e puxando Ana Carolina para cima, poderia ser seriamente comprometido caso eu a matriculasse ali. A dúvida chegou para me atormentar. De alguma forma, remetia a uma sensação de retrocesso.

Agradecemos, Iêda e eu, e já saímos de lá discutindo sobre a responsabilidade da escolha que eu teria que fazer. A incerteza foi-se dissipando lentamente, à medida que minha amiga me convencia de que Carola se adaptaria e seria feliz. Além do mais, não existiam, nessa época, muitas outras escolas similares: era pegar ou largar. Finalmente, meu marido e eu resolvemos acertar sua matrícula numa sexta-feira.

Passei o fim de semana chorando e já sentindo uma culpa enorme pelo possível fracasso. Tive muito medo da repercussão de uma aposta malfeita e dos estragos que aquela convivência pudesse acarretar. A pressão exercida pelos médicos ao longo dos anos voltava a me perturbar. Eu seria sempre a única responsável pelo sucesso ou fracasso no desenvolvimento da minha filha.

Preguiça, apatia ou depressão, mesmo que motivados pelo cansaço, estavam fora de cogitação. Não havia chance para um erro sequer. Escolhas estavam incluídas no cardápio, mas eu teria que me valer da intuição para identificar aquelas que a beneficiariam.

Carola estava animadíssima e com uma prontidão nota dez, contando nos dedos os dias que faltavam para o início das aulas. Na segunda-feira seguinte, acordei determinada a exorcizar todos os meus demônios e a lançar ao fogo do inferno a opinião alheia. Preparei-me desde cedo para aquela tarde especial, lançando mão de uma camada mais grossa de pancake que encobrisse minhas olheiras. O sorriso, que me emprestava um quê de falsidade, foi companheiro, enquanto, aboletadas no assento do carro, víamos entrar, um a um na escola, seus futuros colegas.

A despeito da excitação dela, fiz questão de apontar, em cada figura, onde se encontrava o defeito, o aleijão, a limitação. Descrevi com riqueza de detalhes o comportamento provável e o tipo de manifestação, por vezes chocante, demonstrada por alguém com sérias lesões neurológicas. Ela me escutava, embora seus olhinhos continuassem grudados naquela movimentação.