terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Ilusão de Ótica

Eu poderia jurar que, depois de tantas, ela não voltaria ao assunto “namoro e afins”. Já vinha e com força total, num trololó que me deixava de cabelo em pé. Dava pra ver que se perdia em devaneios e, aí, era batata. A história, com toda a certeza, ainda me renderia alguma preocupação. Afinal, fronteira é algo que deixa de existir para a Carola quando ela põe alguma idéia maluca na cabeça. E esse era um terreno cáustico e impiedoso. Contradição constante. Ameaça à tranqüilidade.

A excursão fazia parte do curso de férias. Sem ele, meu mês de julho tinha toda a chance de se tornar um inferno. Carola era “seca” numa rua. Por mais que eu tentasse segurá-la em casa ela se esquivava, dizendo que não era passarinho pra viver presa na gaiola. Então, mais uma vez e na tentativa de burlar sua intransigência, matriculei-a na escola já conhecida. Ela se distrairia e eu ficaria tranqüila, tocando meus afazeres.

A bendita programação incluía um passeio aqui pertinho da cidade, com piscinada, almoço campestre e atividades de lazer, de acordo com as dificuldades da moçada. Para fechar a temporada com a tranqüilidade reforçada, alguns monitores estariam presentes, garantindo a segurança e o entretenimento, sem perigo de sumiços e quedas. A assistência seria total. O cuidado, permanente. Tudo acertado em detalhes para que o dia fosse só alegria.

Carola voltou pra casa encantada com o Luizão. Quem é essa figura? – perguntava eu, já irritada com o andamento da prosa e o calor da emoção. Ela, esperta que só e sem ocultar o interesse, contava que ele fazia parte do grupo de apoio aos participantes da colônia de férias. Conversa vai, conversa vem, acabei descobrindo que o rapaz já era um homem feito e desconfiei, naturalmente, da bilateralidade do interesse.

Iniciei a sabatina com a certeza de que não chegaria a lugar algum. Ainda assim, disse a ela que o interesse não passava de um romance de verão. Que o rapaz poderia ser até muito bonzinho, e que o fato de tê-la tratado com carinho e atenção não justificava uma paixonite como aquela. Foi aí que ela me veio com a história de que o Luizão era um pouco moreninho, indagando se era por isso que eu não aprovava o namoro. Minhas justificativas foram insuficientes para convencê-la de que nada naquele episódio acabaria em boa coisa.

Preparei-me para os questionamentos vazios, sua pouca ou nenhuma boa vontade em entender minhas explicações e esperei pelo prejuízo. Resolvi investir num formato diferente, tentando, a partir disso, encurtar a distância entre o seu azedume e o meu bom senso. Com preguiça do que vinha contra mim, fiz questão de não questionar limites, propor reflexões, levantar questões: “desprogramei” meus padrões de crença. Fosse o que Deus quisesse!

Ela acordou cantando e passou a manhã inteira com uma música na cabeça. Tenho pra mim que aquela devia ser “a música do casal”. Será que, com o meu mutismo, eu inaugurava um novo tempo? Um tempo de trégua, de complacência amorosa, de paciência? Ou será que eu não havia percebido ainda que o velho, disfarçado de novo, reaparecia para me mostrar as mesmas coisas sob uma ótica diferente?

Naquela sua simplicidade infantil, bem distante de todas as minhas dúvidas e me relegando à condição de eterna coadjuvante, sentenciou:

- Mãe, eu pensei bastante essa noite e cheguei à conclusão de que não vou namorar o Luizão. Sabe lá se eu caso com ele e de repente a gente tem um monte de filhos, tudo xadrez? Ai, não quero não!

“O verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e descobre novas maneiras de se expressar”.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O sal doce da vida

Seria bom demais se a gente pudesse ter sempre ao nosso lado alguém que dissesse como criar bem os filhos. Como agir nas desventuras, nos momentos de dor, nos processos que envolvem doenças e grandes aflições. Também seria legal se nos ensinassem fórmulas mágicas para sairmos do fundo do poço, conservando altruísmo e coragem suficientes para encarar novos desafios, depois de mais uma rebordosa da vida.

Precisei de algum tempo na estrada até entender que filho vem mesmo sem manual de instrução, sobretudo os especiais, como a Carola. Entender que eu precisaria de uma força extra e alguma habilidade pra dissecar feridas profundas como se elas fossem meros arranhões.

Não, nem Freud estaria em condições de explicar o sentimento de impotência gerado pelas peças que a vida me pregava. Meu caso agora exigia a intervenção de alguém mais bem preparado, muitas vezes mais lúcido e extremamente pródigo comigo. Alguém que me respondesse como é que se faz pra não morrer de tanto chorar, pra não perder definitivamente a paciência e fugir pra qualquer lugar.

Volta e meia éramos surpreendidos por mais um episódio de conseqüências penosas, quase surreais. Era incrível como as coisas aconteciam em série com a nossa filha. Seu organismo me parecia frágil. Eu vivia atenta e me desdobrava em cuidados, na expectativa de que se fortalecesse. Achava que assim seria possível driblar algumas doenças oportunistas e uma trégua fosse inaugurada, pondo fim aos episódios sorrateiros que nos pegavam de surpresa. Com a confiança possível, tocava o meu projeto, ainda que fosse possível ouvir os ecos de um desassossego permanente.

Do nada, era uma unha que amanhecia infeccionada e precisava ser retirada; uma conta colocada propositalmente por ela dentro do ouvido sem que eu percebesse, iniciando um processo inflamatório de grande repercussão. Um ralado na coxa que, repentinamente, virava uma ferida aberta a purgar sem parar. Eu sabia que fatalmente tudo seria tratado da mesma maneira: anestesia geral sem chance de qualquer outro tipo de intervenção. Os anos de tratamentos intensivos deixaram sua seqüela manifestada sob a forma de um pavor crônico por roupas brancas, macas e o cheiro hospitalar.

Depois de muitos pedidos e a promessa de um acompanhamento lado a lado, consegui do seu pediatra a indulgência de mantê-la sob meus cuidados, em casa. Fui alertada de que tratar gastrenterite fora do hospital era, no mínimo, o caminho mais rápido para um desenlace de péssimas conseqüências. Mas resolvi mais uma vez arriscar, acreditando que o meu amor de mãe e todo o meu empenho seriam a garantia de mais tranqüilidade para minha filha. Assumi a responsabilidade do desfecho, qualquer que fosse ele.

Um cheiro podre tomava conta do ambiente. Fraldas pesadas eram trocadas em curtos espaços de tempo. O azedo dos vômitos me obrigava a abrir as janelas de todos os quartos da casa para que o cheiro se dissipasse mais rapidamente. Carola se mantinha inerte na minha cama e, já sem forças, quase não chorava. Eu a mantinha hidratada com pequenos goles de “Pedyalite”, tomados vagarosamente com uma colherzinha de chá. Do seu lado permaneci, dias e noites, cumprindo aquele ritual já conhecido.

O quadro se manteve inalterado até que, depois do terceiro dia, me veio uma leve impressão de que ela começava a dar sinais de cansaço. Considerei o risco e assumi com a força que me restava os encargos da minha opção. Tinha a certeza de que tudo havia sido feito e que eu tinha dado o melhor de mim. Seus olhos morteiros deixavam transparecer uma névoa branca e embaçada. Lembrei-me com bastante clareza de quando ainda eram alegres e vivos.

Chamei minha mãe, minha irmã e, numa ciranda solidária, nos demos as mãos. Pedimos orientação e força para que a vontade de Deus fosse feita. Nos entregamos, coração pequeno e alma aflita, para que Ele nos desse a resignação necessária por mais essa vez. Assim, e em silêncio, ficamos aguardando o desfecho daquele episódio. Rezando e entregando nosso bem maior, deixamos que a nossa força cumprisse o papel de fortalecê-la naquele momento.

Foi quando sentimos um ligeiro tremor naquele pequeno corpo. Abrimos os olhos e nos deparamos com uma criança que saia de seu torpor, sorrindo mansamente como se a vida a tomasse nos braços novamente. Choramos muito e, quase não acreditando, nos pusemos a rezar, agora em agradecimento pela nova oportunidade. Daí para frente, fomos surpreendidos por uma melhora crescente, até o seu total restabelecimento.

Perdendo-me mais uma vez num emaranhado de cogitações filosóficas, cheguei à conclusão de que a vida é uma eterna corrida de obstáculos. Não há garantias de que as coisas estarão sempre bem. Em contrapartida, temos que continuar sem nos ater aos percalços, aproveitando os bons momentos como se eles fossem únicos.

É esperar que o bom senso e a vontade de viver vençam a perplexidade dos acontecimentos, reduzindo nosso sofrimento inútil. Até porque, afinal, entra dia e sai dia, nossa existência não deixa de ser uma seqüência de problemas vencidos. E lá vamos nós, pelejando e lutando nesse cabo-de-guerra, às vezes ganhando, às vezes perdendo. Mas sempre tentando sorrir.


“Evitemos o desespero em suaves cotas, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o do simples ato de respirar.”

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Teje presa!

Era um dia da semana como outro qualquer. Eu pressentia alguma dificuldade pela frente, mas ir àquele evento era mais que obrigatório. Era trabalho sério que envolvia uma estratégia funcional da empresa onde meu marido trabalhava. Resultados positivos da negociação sinalizariam o sucesso da empreitada. Para quem vivia de alcançar metas pré-estabelecidas, fechar a cota de objetivo de vendas significava arrojo, desempenho e dinheiro extra.

Só pra complicar, aquele também era o dia em que se comemoraria mais um ano de sacerdócio do padre Landinho. Também era óbvio que a Carola fazia questão de ir até a igreja para a celebração da missa em ação de graças. Como não conseguimos alguém que lhe fizesse companhia até o nosso retorno, consideramos inevitável dizer a ela que, dessa vez, não seria possível prestar sua homenagem ao reverendo. Tentei convencê-la de que bastava rezar em casa para que suas orações fossem ouvidas e o padre fosse aquinhoado com mais uma benção. Chamei sua atenção para a programação interessante da TV, de como era legal jogar paciência e dos milhões de alternativas oferecidas pela Internet. Nada surtiu efeito.

Desisti de buscar novas alternativas depois de tantas ofertas em vão. Mais uma vez ela insistia naquela história das chaves da casa. Por que não podia ter uma se até o Guilherme, que era mais novo que ela, já se utilizava da sua há tempos? Voltei ao velho e desgastado discurso: sua irresponsabilidade nos cuidados com o molho de chaves. Tinha medo que alguém pudesse perceber sua vulnerabilidade, obrigando-a a abrir o apartamento. Isso sem falar em todos os outros problemas que povoavam nossas cabeças. Ela se rebelou, esbravejou e, à revelia dos meus apelos, chorou bem alto pra que todos os vizinhos a ouvissem. Essa era sua fórmula mágica de chamar a atenção de todo mundo. Insistia no respeito aos seus direitos e, me ameaçando, jurou se vingar.

Depois de muitos anos de luta interna, tabefes e castigos sem sucesso, concluí que em alguns momentos, o melhor era não discutir. Aplicaria a ordem sem explicar demais, até porque, não adiantava. Ela não cedia nunca. Aprendi que, se diminuísse o ritmo de minhas ponderações, evitaria respostas impertinentes. Então, apelei para os meus santos de fé e pedi a única coisa possível: muita paciência! Resumia-se nela a chance de ficar mais calma e em paz comigo mesma.

Foi assim que resolvi separar minha roupa para o evento, tomando o cuidado – fundamental – de trancar a porta do quarto. Liguei a televisão mais alto que o recomendável pra não ter que escutar o drama que acontecia do lado de fora. Quase não escutei as batidas firmes na porta. Abri. Lá estava ela com ar de desafio e malícia no canto da boca. Mãos na cintura, balançava os quadris numa forma clássica de intimidação. Convidava-me gentilmente a atender ao telefone e falar com um sujeito que eu não conhecia.

Confirmei o nome, endereço, bairro, CEP, estado civil, identidade e CPF. O indivíduo falava com voz de gângster e se dizia responsável pela Divisão de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente. Suas perguntas tinham o objetivo velado de me constranger e me embaraçar. Respondi a todas elas com a tranqüilidade possível, impressionada com o acréscimo de fatos que não haviam acontecido.

Carola me fitava sorrindo, com ar de vitória. Devolvi e sustentei seu olhar, decidindo por colocar ponto final àquela lambança. Perguntei ao tal Dr. Eponino se ela havia lhe informado sua idade. Ele disse que não, mas que estava francamente comovido com todo aquele relato surpreendente. Intrigada com a observação, passei rapidamente à certeza das intenções de Carola. Precisava reverter o quadro a meu favor, uma vez que estava certa da decisão que havia tomado.

Rapidamente, passei de suspeita à vítima quando resolvi questioná-lo se, no papel de pai de uma menina com necessidades especiais, teria a coragem de confiar-lhe as chaves de sua casa. Negou, questionou, especulou bastante até que, se desculpando, pediu que eu passasse o telefone para a querelante.

Obedeci prontamente e, olhando bem dentro dos seus olhos, devolvi o conhecido balanço dos quadris. Passei o telefone com falsa gentileza. Ela gesticulava nervosa, tentando explicar alguma coisa para ele. Enquanto isso, Dr. Eponino falava sem respirar, emendando um discurso no outro, sem lhe dar a chance de sequer abrir a boca. Até que ele apelou, desligando o telefone sem mais explicações. Quebrou-se o encanto. O potencial para o conflito se instalara e, então, começou tudo de novo.

Irritada, finalizei aquela conversa fiada, lembrando-a de que lá em casa quem mandava era eu. E que ela não perdesse tempo em quedas de braço inúteis. Eu era mais forte e provavelmente ganharia a parada. Exausta, fiquei pensando que, se baseássemos nosso amor no comportamento das crianças, seria muito difícil amá-las.

Na maioria das vezes, sem saber como lidar com as situações, somos obrigados a inventar novos recursos. Precisamos da nossa infalível sensibilidade para enxergar além das diferenças do outro e encontrar a maneira menos penosa de trilharmos juntos o caminho. Quase sempre, essa é uma receita que funciona bem e vale para todas as mães, em algum momento de suas vidas. Tem sido valiosa para mim e costuma não desandar.


“Só quem está no front sabe enfrentar a guerra de todos os dias.”