segunda-feira, 28 de abril de 2008

Domingo no Parque (2/2)

O gesso ocupava grande parte do membro, chegando até a metade da coxa. A recomendação era clara e incluía uma imobilização terapêutica importantíssima, para a total recuperação da paciente. Qualquer tentativa mais ousada de se colocar o pé no chão poderia pôr tudo a perder. Desta forma, meu cunhado conseguiu nos convencer do perigo que representaria a desobediência às suas ordens. Conclusão: alimentação reforçada, banhos e o uso da "comadre", tudo sempre na cama.

Passei a buscar os deveres na escola todos os dias, a encomendar ossos de boi para a sopa diária – o tutano era fundamental – e a seguir uma rotina xiita de cuidados que me ocupava a maior parte do tempo. As sessões de fisioterapia eram demoradas e penosas. Vinham acompanhadas de reclamações e gritos que chegavam à beira de um colapso nervoso. A passagem do tempo apontava para experiências ainda mais traumáticas.

Ao final de três meses de peleja, era chegada a hora de retirar o gesso. Novo drama em meio ao barulho da serra e o pavor de mais um ferimento. Foi preciso a intervenção de dois enfermeiros para a execução do procedimento, tal o descontrole de minha filha. Depois de tanto tempo imobilizada, veio o medo de colocar o pé novamente no chão. Nem promessa, nem presentes foram capazes de mudar sua conduta. As habilidades motoras de Carola corriam o sério risco de voltar à estaca zero.

Doze anos de luta e intensa fisioterapia estavam a ponto de se tornarem inúteis. Sofrendo muito, dei seqüência a métodos pouco ortodoxos com o firme propósito de não relaxar até conseguir sua cooperação. Apelei para berros e, em desespero, cheguei a lhe dar correiadas, a fim de que me obedecesse. Em estado de total desespero, mantive a angústia disfarçada, a insegurança mascarada e uma simulada alegria que estava longe de sentir. Tinha marido e filho com que me preocupar, e eles eram sempre bem mais frágeis do que eu. Estranho se não fosse assim.

Quatro meses se passaram até o seu completo restabelecimento. Foi exigida muita determinação de todos nós. Também foi preciso viver o insuportável. Houve tempo para o "mea culpa" e espaço para deixar doer o coração. Mais uma vez tivemos de viver fora dos formatos tradicionais, questionando valores, discutindo métodos, investigando limites e ampliando fronteiras. Como desbravadora, sempre enfrentei caminhos desconhecidos, começando do começo, tudo de novo, e de novo...

Eu nunca tive notícia de um acidente como aquele. Depois de muito tempo, observei que o tobogã continuava lá, resistindo no mesmo lugar. A árvore também. Tenho pra mim que ela sequer balançou com o impacto do corpo de Carola em seu tronco centenário. Ignorando aquela visão do apocalipse, deu logo um jeito de garantir seus direitos, fincando suas raízes mais e mais fundo, impedindo deste modo ameaças à sua liberdade e natureza. E lá permanece até hoje, sob as benesses do "usucapião".

Felizmente, agora já dá para promover um encontro com o passado. Fico pensando que aquele foi mais um aperitivo perverso do ciclo do inferno. Uma conspiração tramada para provar a precariedade da vida e a grande fragilidade do ser humano. Engraçado... Depois de algum tempo, parece que se empalidecem todos os nossos dramas. Tudo passa, retornando ao seu lugar de origem. E eu tenho que continuar. Afinal, o mal já está feito, a carga dramática, deixada para trás e o que restou ficou estampado na pele como uma tatuagem.

Mas isso não incomoda a Carola. Nem a leve diferença no esquadro de sua perna configurou-se num drama. Será que eu reagiria da mesma forma se tudo isso tivesse acontecido comigo? Não sei, não. Acho mesmo é que ela é muito valente e que, de alguma forma, está preparada para viver situações complicadas com mais sabedoria. É incrível, mas até isso ela superou. Parabéns, filha!

"Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão" (Fernando Pessoa)