sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ponto Cego (1/3)

Fomos acordados com um pequeno estouro, sem saber muito bem de onde vinha. Os efeitos foram sentidos exatamente no momento em que eu tentei esquentar, em vão, o leite no microondas. Ele teimava em não funcionar, da mesma forma que o chuveiro, o ferro de passar roupa, o liquidificador, o barbeador e o elevador. Fiquei pensando que só mesmo acontecendo algo assim para valorizarmos a energia mais cara do Brasil.

No rastro do desacerto, fui construindo minha irritação a cada empecilho. Imaginando que o problema talvez estivesse na fiação da casa, comecei a sofrer com os transtornos que esta constatação traria. Surpreendi-me com a tranqüilidade dos vizinhos que, diferentemente de mim, pareciam não se incomodar com o imprevisto. Não escutei nenhum tipo de reclamação ou movimento que indicasse a busca de providências. Avaliei, indignada, minha pouca tolerância para incidentes como aquele e o estrago que provocavam no meu emocional. Tinham o poder de mexer comigo visceralmente, atrapalhando a rotina e me obrigando a arrumar espaço numa agenda normalmente superlotada de obrigações. Era só o que me faltava!

Pedi aos meninos que descessem com suas bicicletas para a garagem do prédio, enquanto providenciava alguém que me prestasse um socorro rápido. Quase nada poderia ser feito naquela casa enquanto não fosse resolvido o problema elétrico.
No meio da correria, lembrei-me de que minha vizinha era craque em descobrir gente pra consertar qualquer coisa: de cano furado a dobradiças arrebentadas. Gabi me deu o telefone e o nome do camarada: seu Alastor.

Ele chegou trazendo uma maleta velha e surrada. Abri a porta da área e convidei-o a entrar. A janela estava escancarada e uma súbita corrente de ar me fez sentir um calafrio. Seu Alastor era do tipo caladão e não olhava a gente nos olhos. Preferia trabalhar quietinho. Mantinha no rosto um certo ar de deboche, talvez desdém. Eu permanecia a seu lado, relatando os últimos acontecimentos e fornecendo detalhes, sempre à sua disposição. Levei a escada, minha caixa de ferramentas e um pano de limpeza. De vez em quando, eu me assustava com o seu olhar de esguelha para cada canto do apartamento. Fiz todo o possível para que ele não notasse a perturbação que isso provocava em mim.

Distraída, mal pude perceber o estado de ansiedade do Guilherme, contando que a Carola tinha se machucado com a bicicleta, lá embaixo. Perguntei de que forma aquilo acontecera, já que a garagem era pequena e nada havia nela que pudesse provocar um acidente. Pedi que fosse buscá-la, acreditando tratar-se de mais um arranhão. Enquanto isso, seu Alastor terminava seu serviço e, com a graça de Deus, todos os eletrodomésticos voltaram a funcionar, restabelecendo a ordem na casa. Quase beijando meu salvador pelo auxílio prestado, tratei de pagar a conta salgada, dando um jeito de logo despachá-lo dali.

Aproveitei meus cinco segundos de satisfação, curtindo como uma maluca o som da enceradeira no banheiro, da torradeira fazendo pular minhas torradas no ponto e do liquidificador chacoalhando leite com banana. Eu só não sabia que o melhor seria digerir rapidamente meu precioso desjejum. Lidar com os problemas da Carola exigia certo controle e muita saúde para aturar seus escândalos costumeiros. Dentro de mim, alguma coisa dizia que lá vinha mais um abacaxi pra descascar. Onde mesmo seria preciso procurar, para que o meu empenho em resgatar a paz naquele dia redundasse em sucesso?

Foi quando entraram os dois, Carola na frente, surpreendentemente tranqüila, e o Gui com uma carinha assustada, parecendo não entender de onde vinha a tal queixa. Dei uma olhada rápida ao redor de minha filha, procurando algum vestígio vermelho, um rasgão na calça de nylon ou outra coisa qualquer que denunciasse o acidente. Minha sorte foi ter-me assentado, para esmiuçar cada parte do seu pequeno corpo. Corri as mãos em seus braços, puxei com cuidado as mechas de seus cabelos, espiei as unhas e não vi nada. Puxei a calça com cuidado e fui surpreendida com um mar de sangue que saia entre suas perninhas. Deixei que a ducha do chuveiro se incumbisse da limpeza. Era preciso descobrir de onde vinha tudo aquilo. Percebendo a água colorida que descia para o piso do box, Carola começou a chorar. Encolheu-se de forma fetal, dificultando a busca minuciosa, contudo necessária.

Foi preciso que uma outra pessoa me ajudasse. Depois de pelo menos cinco anos de fisioterapia intensa para adquirir força física, tornou-se impossível qualquer tentativa de ser mais forte do que ela.

Liguei para a minha mãe, que estava no trabalho, e sugeri que viesse me dar uma mão. A duras penas, conseguimos apenas ter a certeza de que se tratava de uma ferida de grandes proporções. Liguei para o Dr. Odilon, seu pediatra e médico desde a época de bebê, na esperança de conseguir uma consulta relâmpago. Nada feito. Ele estava num congresso fora da cidade. Passei para o plano B, rezando para que o Dr. Nelson, amigo e também pediatra, não estivesse no mesmo congresso.

Num pulo e já de malas prontas, fomos parar em seu consultório, na expectativa de que ele nos dissesse o que havia acontecido. Outra busca infrutífera. Ele não soube nos dizer. Carola mostrou-se irredutível. Tinha pouquíssima vontade de colaborar. De qualquer forma, disse-me o médico que era caso para cirurgia. Procurei minha ginecologista, que estava de férias. Entreguei minha filha aos cuidados do Dr. Nelson, acreditando que ele seria o meu mentor. E foi. Combinou um encontro entre nós e o Dr. Irineu, cirurgião que ele conhecia muito bem. Depois das explicações sobre o caso, pediu que fôssemos nos encontrar com ele, na porta do hospital Mater Dei.

E lá estava o médico, nos esperando como combinado. Cumprimentei-o com solidária simpatia. Sem conhecimento de quem ele era, embora acreditando em sua capacidade profissional, partimos para o consultório, na esperança de uma última tentativa bem sucedida. Outra vez nada... Carola continuava radical: ninguém encostaria nela. Parecia que tudo conspirava contra nós. Com muito cuidado e, falando suficientemente baixo para que somente eu escutasse, o Dr. Irineu soprou em minha direção que iria se preparar para a cirurgia. Seria, afinal, a única forma de termos idéia da extensão do problema e de como fazer para tentar resolvê-lo.

(continua)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Passado presente

Freud dizia que a maior fonte de sofrimento do ser humano é a convivência com o outro.

Venho percebendo que ninguém é capaz de desmentir esta afirmação. Afinal, ainda não conheci pessoas que tenham se isolado social e afetivamente. Mesmo que algumas vezes nos percamos em atitudes pouco ortodoxas – imperfeitos que somos –, acredito ser possível ao homem executar ações de grande generosidade.

O homem continua sendo o fio condutor de uma série de acontecimentos, sensações e possibilidades. Protagonista de sentimentos admiráveis, como a indulgência, a caridade e a boa vontade, podemos seguir acreditando em sua parceria, em sua humilde intenção de fazer a diferença num mundo em que a satisfação dos desejos costuma ser a regra.

Geralmente esquecemo-nos de que, ao longo de nossas vidas, em algum momento, vamos depender ou precisar do outro. Do equilíbrio do outro, de sua sensatez, de sua capacidade de doação ou percepção da realidade. Existem possibilidades praticamente infinitas de materialização de pequenos sonhos.

Num dia de fim de semana, quando a maioria dos pais planeja algum programa para levar os filhos, o shopping estava lotado e dava pra perceber que as crianças custavam a segurar sua ansiedade. A pista estava lá, parecendo caçoar dos que se achavam prontos a encará-la. Escorregadia e levemente fumegante, convidava a todos para um rodopio, como se o equilíbrio fosse algo a ser desconsiderado.

Carola queria muito colocar os patins, mas a limitação fazia com que transitasse entre o desejo e a realização. Não era a sua primeira vez. Outras tentativas já haviam sido empreendidas, embora sem sucesso. Gastei algum tempo apontando uns e outros, mostrando como as coisas aconteciam com as pessoas que arriscavam uma voltinha no gelo. Elas caíam sim, mas se levantavam, consertavam a roupa, passavam as mãos no tecido molhado e voltavam para mais um ensaio. Encorajei-a a assumir o risco, como se eu mesma não estivesse ansiosa com a possibilidade de um pequeno acidente. Lembro-me de ter pedido a Deus que me convencesse de que meu esforço não redundaria numa futura falta de confiança de minha filha em mim.

E aí apareceu aquele rapaz. Percebendo a fragilidade, colocou-se ao seu lado, abaixando e falando carinhosamente com ela. Escutei, vagamente, algumas palavras de incentivo e explicações sobre um medo que ela não precisava ter. Ele estaria junto a ela todo o tempo e, em hipótese alguma, a deixaria cair. Pediu que ela acreditasse em suas palavras. Fiquei surpresa com aquela forma de catequese, de resultados tão imediatos. Como ela se convencera tão rapidamente? Poucas vezes eu havia conseguido sua aquiescência com tamanha prontidão.

A resposta estava ali, na minha frente. Acompanhei seus movimentos e pude perceber que aquele desconhecido tinha a agilidade física e mental que eu costumava esperar da maioria das pessoas. O receio de Carola, embora de forma branda, estava estampado em seu rosto. A paciência e o trabalho diligente do professor fizeram com que aquela máscara fosse se transformando em alegria, perceptível aos olhos mais atentos. Colocando-se por trás dela, sustentava seu pequeno corpo nas pernas levemente dobradas. A segurança vinha do encosto das costas em seu peito protetor. Essa conduta foi suficiente para que ela sentisse a sensação de segurança, liberdade e superação que faziam parte da brincadeira.

Todos os olhares se convergiram para aquela cena. Crianças e jovens que ali brincavam foram se afastando, dando espaço para o par em seu passeio mágico. Com desenvoltura, percorreram mansa e alegremente toda a trajetória da pista. Não percebi vacilo. Nem medo, nem ansiedade. Apenas a satisfação de ambos, como se entre eles houvesse um elo, revelado na harmonia dos corpos, sintonia perfeita, lapidada no respeito e na vontade de provocar alegria.

Por alguns instantes, vi um enxame de anjos esculpidos em cada um dos quatro cantos do ringue. A musica vinha de suas trombetas, enchendo o ar de sons diáfanos. Nos olhos de Carola acenderam-se estrelas. Senti em mim um vento soprando, como se tudo estivesse mudando de direção. E me recordei de que mesmo a mais longa das caminhadas exige uma abordagem passo a passo, por intermédio daqueles que passam por nossa vida. Tenho pra mim que ali se cumpria um plano secreto, resgatado pela arte e pela solidariedade. Percebi que a riqueza do relacionamento é a soma que vem das diferenças: o simplesmente racional não basta.

Difícil traduzir em palavras todas as sensações contidas por trás das imagens. Não há como sair imune depois de tudo o que foi vivido. Foi preciso estar bem acordado para vivenciar a poesia e o encanto, o afeto franco, a lucidez de quem não ignora as dificuldades. Foi necessário enxergar além da eficiência de alguém bem treinado, para só então alcançar as miragens sonhadas. Foi preciso, também, um novo olhar que traduzisse a intervenção poética na beleza dos corpos, na explosão dos sentidos, na harmonia do silêncio dos dois.

Obrigada, amigo. A você, cujo nome eu nem sei. Obrigada pelo gesto modesto, mas relevante. Pela compaixão que te levou à capacidade de escutar e agir com atenção silenciosa e paciente. Pelo otimismo cauteloso e seguro. Você provou que é possível repartir o que o ser humano tem de melhor. E assim, provavelmente, fez com que minha filha sentisse que o outro, na maioria das vezes, não representa medo, mas segurança. Em seu trabalho autoral, recheado de improviso, encontra-se um amigo sério, daqueles que fazem da realidade fonte de aprendizagem, mas que lutam para que a fantasia não desapareça.

As modificações não se manifestaram apenas em Carola. Foi exatamente a atitude de um desconhecido que me fez acordar para um tempo novo, que eu pensava nem existir. O espaço do realizável neste nosso mundo de medidas quase exatas, e que costuma ter as próprias regras – o dia-a-dia. Fez-me parar pra pensar que, muitas vezes, é preciso mais que acordar os sentidos e sacudir a indiferença para se chegar à essência do que existe por trás da ação. Com talento e técnica admiráveis, você deixou que a minha filha passasse da condição de figurante, e, roubando a cena, saísse como protagonista nesta estréia.

Meu amigo, aqui, em Belo Horizonte, seu trabalho deixou reticências de saudade; nunca um ponto final. A memória, ao contrário de mim, que já entrevejo o entardecer, continua viva, como se o tempo não tivesse passado. Ainda posso ouvir os ecos de sua passagem. A Carola continua alegre, amorosa e mergulhada em suas fantasias. Provavelmente, também não se esqueceu de você. Deve apenas andar distraída, colhendo estrelas por aí. Acho que esperando por uma próxima oportunidade, esquecida de que estréias são costumeiramente tensas, mesmo para veteranos como você. Então, até o próximo show!

“ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos “