terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ponto Cego (3/3)

A semana passou aos trancos e barrancos, regada a muito desconforto, dores e choro. Eu estava mais pra alma penada do que pra gente. Estava exausta, com o emocional em frangalhos, e descobri como é duro exercitar a disciplina contra a imposição de um modelo perverso. Seguindo orientações, passamos, ao final deste tempo, pelo consultório do Doutor Irineu. Quase ressuscitei ao ouvir suas palavras animadoras e carregadas de genuína emoção.

Vi-me novamente naquele lugar tão conhecido, praticamente íntimo. O lugar onde eu me encontrava quase sempre, tentando entender o limiar entre consentimento e negação, depois de dias de sufoco. Até onde, ou quando, seria possível evitar mais uma tragédia? Lembro-me de alguém dizendo que “viver as experiências que a vida nos oferece é obrigatório; sofrer com elas ou desfrutá-las é opcional”. De que experiências a criatura estaria falando? Será que existe alguém no mundo capaz de vivenciar a dor de um filho e se manter emocionalmente inviolável? Até que pode ser, mas duvido que quem enunciou esta frase imagine a complexa tarefa que é manter os filhos vivos, saudáveis e felizes.

Com a volta às aulas, aproveitei para tentar fazer minhas descobertas. Com as crianças estudando, eu teria algum tempo e a paciência resignada para conseguir uma resposta que apaziguasse minha alma. Não era possível passar por tudo aquilo sem um esclarecimento minimamente decente. Coloquei a bicicleta de rodas pro ar e comecei o escrutínio criterioso de cada peça. Estava de olho nos detalhes importantes, como o calibre dos pneus e os artefatos pontiagudos. Busquei algum ferro retorcido e fora de lugar, dando seqüência ao meu projeto de desagravo. Verifiquei a ponta do selim, mas não achei nada suspeito. Era arredondado e um pouco largo. E o freio da bicicleta? Talvez a resposta estivesse ali. Apertei-o várias vezes até me certificar de que ele não estava deslocado pra lado algum. Descartei mais esta possibilidade e me lembrei de que o guidão, com a sua ponta de borracha e colado ao freio, não seria capaz de causar um dano tão incisivo. Enfim, toda a pesquisa redundou em nada. Por razões misteriosas, eu estava de volta à sensação de que segredos existenciais, não revelados, andavam pelas cercanias.

Um medo assustador me envolveu quando fui agradecer à Gabi e aos serviços nota dez prestados pelo eletricista. Ela, me olhando como se eu estivesse noutro mundo, entre a sanidade e a loucura, explicou que nem conhecia tal figura. O ineditismo da informação deu vazão à sensação da existência de segredos atrás das portas. Fiquei mais grilada ainda quando soube da origem do nome Alastor: "demônio cruel". Tudo precisava ser visto com desconfiança, afinal, a imaginação é a mãe dos sonhos, mas também dos pesadelos.

Este tema foi um ponto cego em minha vida durante muitos anos. Não foi possível passar pela experiência sem fazer considerações de natureza filosófica, existencialista e religiosa. Afinal, ela fugia dos padrões a que estamos acostumados. Foi um caso plantado, desses que desafiam todas as teorias da interpretação e acabam levantando suspeita contra tudo e contra todos. Seria preciso discutir métodos, ponderar limites e ampliar fronteiras. Será que eu ainda estava disposta? Diante de tudo aquilo, cheguei à conclusão de que não valia a pena. Há uma defasagem entre o conhecimento, o entendimento e o comportamento. Decidi deixar tudo como estava: sem resposta. Até porque, existem na vida certos obstáculos intransponíveis. E este era mais um deles.


"A fé é uma conquista difícil, que exige combates diários para ser mantida." (Paulo Coelho)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ponto Cego (2/3)

No corredor, aguardamos até que a sala de cirurgia estivesse preparada. Carola parecia não se incomodar com o que havia acontecido em suas vias baixas. Eu mal podia entender aquela cena! Puxando assunto com uns e outros, ela se locomovia sem reservas ou dores aparentes, como se estivesse numa reunião entre amigos. Sua única exigência era a de que eu permanecesse a seu lado todo o tempo. E assim foi que entramos no bloco cirúrgico. Gastaram pouco tempo até sedá-la. Eu me encontrava estrategicamente de pé, logo acima de sua cabeça. Ali, era possível acompanhar a movimentação dos médicos e ainda ficar de olho caso a anestesia começasse a acabar.

Após alguns minutos de escrutínio, fui convidada pelo cirurgião a dar uma olhada no local do estrago. A imagem prescindia de palavras. Horrorizada, eu ouvia os comentários dos médicos. Diante da visão surreal, um consternado Dr. Irineu declarou jamais ter visto ocorrência semelhante em seus anos de profissão. Fiquei imaginando o que poderia ter provocado tudo aquilo, enquanto meu relógio andava mais lentamente que o normal. Talvez porque eu estivesse ligada demais no tempo que o médico levou para costurar a ferida.

Terminada a cirurgia, ele me confidenciou que a recuperação seria dolorosa. Que o material introduzido era pontudo e cortante. A peça havia entrado com força bastante para dilacerar e cortar, longitudinalmente, grande parte da região pélvica. Repetiu, incessantemente, que o objetivo seria levar a sério condições máximas de higiene. Banhos permanentes fariam parte dos cuidados, especialmente após o uso do vaso. Antibióticos potentes foram receitados com a finalidade de se evitar um mal maior. Enfatizou o uso concomitante de analgésicos fortíssimos e conclui a sessão com um discurso sobre a inclusão de altas doses de paciência.

Enquanto escutava sua dissertação, dava tratos à bola sobre os efeitos daquele acontecimento na vida da Carola. Quanta estupidez! A infância afinal perdera sua inocência – artigo de luxo num mercado saturado de informações a cada dia mais precoces. Não era isso que eu havia sonhado para a minha filha. Pensava sempre em descobertas feitas a seu tempo. Que ela, como todo mundo, tivesse direito a passeios imaginários, sonhos adolescentes, frufrus e fricotes. Com alguma tristeza, recordei que o nosso mundo – o dos especiais –, um pouco mais cruel que outros, impunha um novo olhar e ações mais objetivas. Acontecimentos normais da vida exigiam explicação prática e objetiva, sem direito a jogos retóricos. Fui obrigada, por vezes, a me adiantar nas explicações sobre sexualidade e maldades alheias, como única forma de ajuda-la a preservar-se. Consternada, segui a estratégia obrigatória do expediente, tendo a certeza de que ela seria a responsável pela ruptura da fantasia e da ilusão. E quem seria capaz de viver sem elas?

Voltando do devaneio momentâneo, fui surpreendida por minha própria ousadia ao superar tabus. Num orgulho que não ocultava desespero e acrescido de alguma frustração, ainda tive a coragem para fazer uma pergunta que não se calava na garganta – minha filha continuaria virgem ou não? Percebi um leve sorriso camuflado no canto da boca do Dr.Irineu. Enrubesci discretamente, consciente da polêmica que aquela pergunta poderia gerar. Encarando meu interlocutor com um olhar acima de qualquer suspeita, fui voltando a uma condição mais próxima da normal depois de saber que, naquela idade, oito anos aproximadamente na época, o hímen é complacente.

Dr. Irineu tinha toda razão quando me mostrou – literalmente – o caminho das pedras a seguir. Tudo foi mesmo muito mais difícil do que eu poderia supor. Meu conselheiro, de forma firme e suave, fez com que eu me recordasse de que Deus não me prometeu dias sem dor, risos sem sofrimento, sol sem chuva. Que eu, apesar de tudo, ainda agradecesse muito a Ele. Havíamos tido sorte de acordo com o médico, que expôs as dificuldades que poderíamos enfrentar caso o intestino e a bexiga tivessem sido perfurados.

O sofrimento a mim imposto fazia uma interface cruel com a sorte de minha filha. Qual seria o propósito daquela lição? Será que no meio de tanta gente neste mundo, Deus foi achar logo a mim para testar virtude e integridade, por meio de desafios pesados e constantes? Eu já andava cansada de ser sua protagonista ideal – a que bailava nos conflitos e acreditava na esperança, indo do tormento à alegria tão rapidamente como se estivesse numa montanha-russa. Neste caso, e o que era pior, Carola se mostrava como a mais vulnerável das vítimas.
(Continua.)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ponto Cego (1/3)

Fomos acordados com um pequeno estouro, sem saber muito bem de onde vinha. Os efeitos foram sentidos exatamente no momento em que eu tentei esquentar, em vão, o leite no microondas. Ele teimava em não funcionar, da mesma forma que o chuveiro, o ferro de passar roupa, o liquidificador, o barbeador e o elevador. Fiquei pensando que só mesmo acontecendo algo assim para valorizarmos a energia mais cara do Brasil.

No rastro do desacerto, fui construindo minha irritação a cada empecilho. Imaginando que o problema talvez estivesse na fiação da casa, comecei a sofrer com os transtornos que esta constatação traria. Surpreendi-me com a tranqüilidade dos vizinhos que, diferentemente de mim, pareciam não se incomodar com o imprevisto. Não escutei nenhum tipo de reclamação ou movimento que indicasse a busca de providências. Avaliei, indignada, minha pouca tolerância para incidentes como aquele e o estrago que provocavam no meu emocional. Tinham o poder de mexer comigo visceralmente, atrapalhando a rotina e me obrigando a arrumar espaço numa agenda normalmente superlotada de obrigações. Era só o que me faltava!

Pedi aos meninos que descessem com suas bicicletas para a garagem do prédio, enquanto providenciava alguém que me prestasse um socorro rápido. Quase nada poderia ser feito naquela casa enquanto não fosse resolvido o problema elétrico.
No meio da correria, lembrei-me de que minha vizinha era craque em descobrir gente pra consertar qualquer coisa: de cano furado a dobradiças arrebentadas. Gabi me deu o telefone e o nome do camarada: seu Alastor.

Ele chegou trazendo uma maleta velha e surrada. Abri a porta da área e convidei-o a entrar. A janela estava escancarada e uma súbita corrente de ar me fez sentir um calafrio. Seu Alastor era do tipo caladão e não olhava a gente nos olhos. Preferia trabalhar quietinho. Mantinha no rosto um certo ar de deboche, talvez desdém. Eu permanecia a seu lado, relatando os últimos acontecimentos e fornecendo detalhes, sempre à sua disposição. Levei a escada, minha caixa de ferramentas e um pano de limpeza. De vez em quando, eu me assustava com o seu olhar de esguelha para cada canto do apartamento. Fiz todo o possível para que ele não notasse a perturbação que isso provocava em mim.

Distraída, mal pude perceber o estado de ansiedade do Guilherme, contando que a Carola tinha se machucado com a bicicleta, lá embaixo. Perguntei de que forma aquilo acontecera, já que a garagem era pequena e nada havia nela que pudesse provocar um acidente. Pedi que fosse buscá-la, acreditando tratar-se de mais um arranhão. Enquanto isso, seu Alastor terminava seu serviço e, com a graça de Deus, todos os eletrodomésticos voltaram a funcionar, restabelecendo a ordem na casa. Quase beijando meu salvador pelo auxílio prestado, tratei de pagar a conta salgada, dando um jeito de logo despachá-lo dali.

Aproveitei meus cinco segundos de satisfação, curtindo como uma maluca o som da enceradeira no banheiro, da torradeira fazendo pular minhas torradas no ponto e do liquidificador chacoalhando leite com banana. Eu só não sabia que o melhor seria digerir rapidamente meu precioso desjejum. Lidar com os problemas da Carola exigia certo controle e muita saúde para aturar seus escândalos costumeiros. Dentro de mim, alguma coisa dizia que lá vinha mais um abacaxi pra descascar. Onde mesmo seria preciso procurar, para que o meu empenho em resgatar a paz naquele dia redundasse em sucesso?

Foi quando entraram os dois, Carola na frente, surpreendentemente tranqüila, e o Gui com uma carinha assustada, parecendo não entender de onde vinha a tal queixa. Dei uma olhada rápida ao redor de minha filha, procurando algum vestígio vermelho, um rasgão na calça de nylon ou outra coisa qualquer que denunciasse o acidente. Minha sorte foi ter-me assentado, para esmiuçar cada parte do seu pequeno corpo. Corri as mãos em seus braços, puxei com cuidado as mechas de seus cabelos, espiei as unhas e não vi nada. Puxei a calça com cuidado e fui surpreendida com um mar de sangue que saia entre suas perninhas. Deixei que a ducha do chuveiro se incumbisse da limpeza. Era preciso descobrir de onde vinha tudo aquilo. Percebendo a água colorida que descia para o piso do box, Carola começou a chorar. Encolheu-se de forma fetal, dificultando a busca minuciosa, contudo necessária.

Foi preciso que uma outra pessoa me ajudasse. Depois de pelo menos cinco anos de fisioterapia intensa para adquirir força física, tornou-se impossível qualquer tentativa de ser mais forte do que ela.

Liguei para a minha mãe, que estava no trabalho, e sugeri que viesse me dar uma mão. A duras penas, conseguimos apenas ter a certeza de que se tratava de uma ferida de grandes proporções. Liguei para o Dr. Odilon, seu pediatra e médico desde a época de bebê, na esperança de conseguir uma consulta relâmpago. Nada feito. Ele estava num congresso fora da cidade. Passei para o plano B, rezando para que o Dr. Nelson, amigo e também pediatra, não estivesse no mesmo congresso.

Num pulo e já de malas prontas, fomos parar em seu consultório, na expectativa de que ele nos dissesse o que havia acontecido. Outra busca infrutífera. Ele não soube nos dizer. Carola mostrou-se irredutível. Tinha pouquíssima vontade de colaborar. De qualquer forma, disse-me o médico que era caso para cirurgia. Procurei minha ginecologista, que estava de férias. Entreguei minha filha aos cuidados do Dr. Nelson, acreditando que ele seria o meu mentor. E foi. Combinou um encontro entre nós e o Dr. Irineu, cirurgião que ele conhecia muito bem. Depois das explicações sobre o caso, pediu que fôssemos nos encontrar com ele, na porta do hospital Mater Dei.

E lá estava o médico, nos esperando como combinado. Cumprimentei-o com solidária simpatia. Sem conhecimento de quem ele era, embora acreditando em sua capacidade profissional, partimos para o consultório, na esperança de uma última tentativa bem sucedida. Outra vez nada... Carola continuava radical: ninguém encostaria nela. Parecia que tudo conspirava contra nós. Com muito cuidado e, falando suficientemente baixo para que somente eu escutasse, o Dr. Irineu soprou em minha direção que iria se preparar para a cirurgia. Seria, afinal, a única forma de termos idéia da extensão do problema e de como fazer para tentar resolvê-lo.

(continua)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Passado presente

Freud dizia que a maior fonte de sofrimento do ser humano é a convivência com o outro.

Venho percebendo que ninguém é capaz de desmentir esta afirmação. Afinal, ainda não conheci pessoas que tenham se isolado social e afetivamente. Mesmo que algumas vezes nos percamos em atitudes pouco ortodoxas – imperfeitos que somos –, acredito ser possível ao homem executar ações de grande generosidade.

O homem continua sendo o fio condutor de uma série de acontecimentos, sensações e possibilidades. Protagonista de sentimentos admiráveis, como a indulgência, a caridade e a boa vontade, podemos seguir acreditando em sua parceria, em sua humilde intenção de fazer a diferença num mundo em que a satisfação dos desejos costuma ser a regra.

Geralmente esquecemo-nos de que, ao longo de nossas vidas, em algum momento, vamos depender ou precisar do outro. Do equilíbrio do outro, de sua sensatez, de sua capacidade de doação ou percepção da realidade. Existem possibilidades praticamente infinitas de materialização de pequenos sonhos.

Num dia de fim de semana, quando a maioria dos pais planeja algum programa para levar os filhos, o shopping estava lotado e dava pra perceber que as crianças custavam a segurar sua ansiedade. A pista estava lá, parecendo caçoar dos que se achavam prontos a encará-la. Escorregadia e levemente fumegante, convidava a todos para um rodopio, como se o equilíbrio fosse algo a ser desconsiderado.

Carola queria muito colocar os patins, mas a limitação fazia com que transitasse entre o desejo e a realização. Não era a sua primeira vez. Outras tentativas já haviam sido empreendidas, embora sem sucesso. Gastei algum tempo apontando uns e outros, mostrando como as coisas aconteciam com as pessoas que arriscavam uma voltinha no gelo. Elas caíam sim, mas se levantavam, consertavam a roupa, passavam as mãos no tecido molhado e voltavam para mais um ensaio. Encorajei-a a assumir o risco, como se eu mesma não estivesse ansiosa com a possibilidade de um pequeno acidente. Lembro-me de ter pedido a Deus que me convencesse de que meu esforço não redundaria numa futura falta de confiança de minha filha em mim.

E aí apareceu aquele rapaz. Percebendo a fragilidade, colocou-se ao seu lado, abaixando e falando carinhosamente com ela. Escutei, vagamente, algumas palavras de incentivo e explicações sobre um medo que ela não precisava ter. Ele estaria junto a ela todo o tempo e, em hipótese alguma, a deixaria cair. Pediu que ela acreditasse em suas palavras. Fiquei surpresa com aquela forma de catequese, de resultados tão imediatos. Como ela se convencera tão rapidamente? Poucas vezes eu havia conseguido sua aquiescência com tamanha prontidão.

A resposta estava ali, na minha frente. Acompanhei seus movimentos e pude perceber que aquele desconhecido tinha a agilidade física e mental que eu costumava esperar da maioria das pessoas. O receio de Carola, embora de forma branda, estava estampado em seu rosto. A paciência e o trabalho diligente do professor fizeram com que aquela máscara fosse se transformando em alegria, perceptível aos olhos mais atentos. Colocando-se por trás dela, sustentava seu pequeno corpo nas pernas levemente dobradas. A segurança vinha do encosto das costas em seu peito protetor. Essa conduta foi suficiente para que ela sentisse a sensação de segurança, liberdade e superação que faziam parte da brincadeira.

Todos os olhares se convergiram para aquela cena. Crianças e jovens que ali brincavam foram se afastando, dando espaço para o par em seu passeio mágico. Com desenvoltura, percorreram mansa e alegremente toda a trajetória da pista. Não percebi vacilo. Nem medo, nem ansiedade. Apenas a satisfação de ambos, como se entre eles houvesse um elo, revelado na harmonia dos corpos, sintonia perfeita, lapidada no respeito e na vontade de provocar alegria.

Por alguns instantes, vi um enxame de anjos esculpidos em cada um dos quatro cantos do ringue. A musica vinha de suas trombetas, enchendo o ar de sons diáfanos. Nos olhos de Carola acenderam-se estrelas. Senti em mim um vento soprando, como se tudo estivesse mudando de direção. E me recordei de que mesmo a mais longa das caminhadas exige uma abordagem passo a passo, por intermédio daqueles que passam por nossa vida. Tenho pra mim que ali se cumpria um plano secreto, resgatado pela arte e pela solidariedade. Percebi que a riqueza do relacionamento é a soma que vem das diferenças: o simplesmente racional não basta.

Difícil traduzir em palavras todas as sensações contidas por trás das imagens. Não há como sair imune depois de tudo o que foi vivido. Foi preciso estar bem acordado para vivenciar a poesia e o encanto, o afeto franco, a lucidez de quem não ignora as dificuldades. Foi necessário enxergar além da eficiência de alguém bem treinado, para só então alcançar as miragens sonhadas. Foi preciso, também, um novo olhar que traduzisse a intervenção poética na beleza dos corpos, na explosão dos sentidos, na harmonia do silêncio dos dois.

Obrigada, amigo. A você, cujo nome eu nem sei. Obrigada pelo gesto modesto, mas relevante. Pela compaixão que te levou à capacidade de escutar e agir com atenção silenciosa e paciente. Pelo otimismo cauteloso e seguro. Você provou que é possível repartir o que o ser humano tem de melhor. E assim, provavelmente, fez com que minha filha sentisse que o outro, na maioria das vezes, não representa medo, mas segurança. Em seu trabalho autoral, recheado de improviso, encontra-se um amigo sério, daqueles que fazem da realidade fonte de aprendizagem, mas que lutam para que a fantasia não desapareça.

As modificações não se manifestaram apenas em Carola. Foi exatamente a atitude de um desconhecido que me fez acordar para um tempo novo, que eu pensava nem existir. O espaço do realizável neste nosso mundo de medidas quase exatas, e que costuma ter as próprias regras – o dia-a-dia. Fez-me parar pra pensar que, muitas vezes, é preciso mais que acordar os sentidos e sacudir a indiferença para se chegar à essência do que existe por trás da ação. Com talento e técnica admiráveis, você deixou que a minha filha passasse da condição de figurante, e, roubando a cena, saísse como protagonista nesta estréia.

Meu amigo, aqui, em Belo Horizonte, seu trabalho deixou reticências de saudade; nunca um ponto final. A memória, ao contrário de mim, que já entrevejo o entardecer, continua viva, como se o tempo não tivesse passado. Ainda posso ouvir os ecos de sua passagem. A Carola continua alegre, amorosa e mergulhada em suas fantasias. Provavelmente, também não se esqueceu de você. Deve apenas andar distraída, colhendo estrelas por aí. Acho que esperando por uma próxima oportunidade, esquecida de que estréias são costumeiramente tensas, mesmo para veteranos como você. Então, até o próximo show!

“ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos “

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Domingo no Parque (2/2)

O gesso ocupava grande parte do membro, chegando até a metade da coxa. A recomendação era clara e incluía uma imobilização terapêutica importantíssima, para a total recuperação da paciente. Qualquer tentativa mais ousada de se colocar o pé no chão poderia pôr tudo a perder. Desta forma, meu cunhado conseguiu nos convencer do perigo que representaria a desobediência às suas ordens. Conclusão: alimentação reforçada, banhos e o uso da "comadre", tudo sempre na cama.

Passei a buscar os deveres na escola todos os dias, a encomendar ossos de boi para a sopa diária – o tutano era fundamental – e a seguir uma rotina xiita de cuidados que me ocupava a maior parte do tempo. As sessões de fisioterapia eram demoradas e penosas. Vinham acompanhadas de reclamações e gritos que chegavam à beira de um colapso nervoso. A passagem do tempo apontava para experiências ainda mais traumáticas.

Ao final de três meses de peleja, era chegada a hora de retirar o gesso. Novo drama em meio ao barulho da serra e o pavor de mais um ferimento. Foi preciso a intervenção de dois enfermeiros para a execução do procedimento, tal o descontrole de minha filha. Depois de tanto tempo imobilizada, veio o medo de colocar o pé novamente no chão. Nem promessa, nem presentes foram capazes de mudar sua conduta. As habilidades motoras de Carola corriam o sério risco de voltar à estaca zero.

Doze anos de luta e intensa fisioterapia estavam a ponto de se tornarem inúteis. Sofrendo muito, dei seqüência a métodos pouco ortodoxos com o firme propósito de não relaxar até conseguir sua cooperação. Apelei para berros e, em desespero, cheguei a lhe dar correiadas, a fim de que me obedecesse. Em estado de total desespero, mantive a angústia disfarçada, a insegurança mascarada e uma simulada alegria que estava longe de sentir. Tinha marido e filho com que me preocupar, e eles eram sempre bem mais frágeis do que eu. Estranho se não fosse assim.

Quatro meses se passaram até o seu completo restabelecimento. Foi exigida muita determinação de todos nós. Também foi preciso viver o insuportável. Houve tempo para o "mea culpa" e espaço para deixar doer o coração. Mais uma vez tivemos de viver fora dos formatos tradicionais, questionando valores, discutindo métodos, investigando limites e ampliando fronteiras. Como desbravadora, sempre enfrentei caminhos desconhecidos, começando do começo, tudo de novo, e de novo...

Eu nunca tive notícia de um acidente como aquele. Depois de muito tempo, observei que o tobogã continuava lá, resistindo no mesmo lugar. A árvore também. Tenho pra mim que ela sequer balançou com o impacto do corpo de Carola em seu tronco centenário. Ignorando aquela visão do apocalipse, deu logo um jeito de garantir seus direitos, fincando suas raízes mais e mais fundo, impedindo deste modo ameaças à sua liberdade e natureza. E lá permanece até hoje, sob as benesses do "usucapião".

Felizmente, agora já dá para promover um encontro com o passado. Fico pensando que aquele foi mais um aperitivo perverso do ciclo do inferno. Uma conspiração tramada para provar a precariedade da vida e a grande fragilidade do ser humano. Engraçado... Depois de algum tempo, parece que se empalidecem todos os nossos dramas. Tudo passa, retornando ao seu lugar de origem. E eu tenho que continuar. Afinal, o mal já está feito, a carga dramática, deixada para trás e o que restou ficou estampado na pele como uma tatuagem.

Mas isso não incomoda a Carola. Nem a leve diferença no esquadro de sua perna configurou-se num drama. Será que eu reagiria da mesma forma se tudo isso tivesse acontecido comigo? Não sei, não. Acho mesmo é que ela é muito valente e que, de alguma forma, está preparada para viver situações complicadas com mais sabedoria. É incrível, mas até isso ela superou. Parabéns, filha!

"Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão" (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 24 de março de 2008

Domingo no Parque (1/2)

Ainda não eram oito horas da manhã e a turminha já estava em polvorosa. Não era pra menos. Chegara, afinal, o tão esperado domingo. Era mesmo um dia especial, e trazia consigo a boa surpresa da inauguração do tobogã do Parque Municipal. Receosos de um lapso da nossa memória, a Carola e o Gui fizeram questão de, rapidamente, nos botar pra fora da cama, imaginando que o mundo pudesse acabar naquele instante.

Numa barganha conveniente, aproveitei a deixa para exigir mais atenção aos estudos e afins. Lembrei-os de que andavam se esquecendo de algumas tarefas corriqueiras, como guardar seus pertences nos devidos lugares, depois de utilizados. Reclamei o fim dos atrevimentos que, ultimamente, andavam na ponta da língua. Assegurei-me de que haviam entendido as regras de obediência e a instauração de uma nova atitude, sem direito a recidivas.

E, já que promessa é dívida, lá fomos nós – eu, meu marido e as crianças – para o programa combinado. Tudo acertado, catei meus sobrinhos, os trigêmeos da minha irmã, e seguimos felizes para a pequena aventura matinal. A pouca diferença de idade entre eles funcionava como um catalisador na interação e na identificação de interesses comuns. Assim, era habitual vê-los sempre juntos na maioria das ocasiões.

A brincadeira rolou por horas a fio, com a meninada pulando de um brinquedo para o outro, na maior folia. Decidimos, então, que já era tempo de “levantar acampamento”. Uma última descida no tobogã, pra fechar com chave de ouro a empreitada, e voltaríamos para casa. Percebi, tardiamente, a intenção das duas meninas quando vi os braços de Juliana, minha afilhada, envolvendo a cintura de Carola. Entusiasmadas, acharam por bem descer assentadas no mesmo tapete, sem saber que o peso dobrado aumentaria sua velocidade. E aí, veio o desastre. Perdido o controle, vi minha filha voando em curva ao final da chegada. Com as pernas esticadas, foi se estatelar a uns três metros de distância, chocando-se com uma árvore que ficava à direita, logo adiante.

Não se ouviu um choro sequer. Só o espanto de ver que o pé não se movia pra lado algum e continuava deitado, inerte na grama. Dois ossos se partiram e saíram pela lateral interna da perna, arrebentando com crueldade a carne e a pele. Tudo saiu do seu formato original. E ninguém fazia nada além de olhar e lamentar, naquela aridez de ação que corrói a alma e empoeira as esperanças.

Triste espera para o atendimento de urgência, no Pronto Socorro. Nossos corações estavam miúdos de dor e apreensão. Horas que não passavam, e uma angústia que não tinha fim. A única certeza era a de que nossa filha estava entregue às mãos habilidosas do ortopedista. Por sorte e destino, ele vinha a ser o seu padrinho de batismo.

Rodopiei à beira do precipício quando soube que a cirurgia, longa e bem sucedida, poderia não ser suficiente para a sua plena recuperação. O tempo à espera dos procedimentos, a ferida aberta e o perigo de uma infecção passaram a ser considerados riscos para uma amputação. Na cumplicidade do silêncio, evoquei todos os meus santos de fé e, sem culpa alguma, fui capaz de pensar que a tecnologia de Exu poderia colocar patuá baiano no chinelo e dar solução ao impensável.

Dias longos e sofridos no hospital. Muito choro, muita dor e a nossa capacidade infinita de acreditar que tudo daria certo. Ao final de quinze dias e uma lista de obrigações inadiáveis, voltamos para casa. Como sempre, eu ficava imaginando qual seria o lado oculto dessa manifestação tão dolorosa. Muito trabalho ainda me aguardava...

segunda-feira, 17 de março de 2008

O lado oculto

Descobri que sou uma pessoa de sorte. Alguns podem achar que ela se materialize sob a forma de dinheiro, ganho num jogo de loteria ou herança. Outros, porque conseguiram "aquele" emprego tão desejado – a única maneira de cristalizar seus sonhos pelo viés do trabalho. Estão por aí os que agradecem todos os dias pelo simples fato de estarem vivos, aceitando com prazer o desafio da luta rotineira: são especiais. De minha parte e ao longo dessa jornada, chego à conclusão de que Deus sempre esteve comigo. Sua presença constante reforça minha coragem, indicando sempre um caminho seguro em meio ao denso nevoeiro. Esta é, a meu ver, a maior sorte que o ser humano pode ter.
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Por Sua obra e graça, Carola ainda não havia despertado para o sexo. Idade ela já tinha de sobra para isso. Contudo, eu jamais percebera qualquer tipo de manifestação que sinalizasse perigo iminente. Certa tranqüilidade ainda tomava conta de mim. Foi quando uma grande amiga cogitou sobre a possibilidade de uma histerectomia parcial ou uma ligadura de trompas.

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A ação, de acordo com o seu raciocínio, poderia nos poupar futuros dissabores, de conseqüências desastrosas. De fato, eu não estava preparada para aquele acontecimento. Pra falar a verdade, ser avó passava bem longe do que eu poderia considerar um desejo. Acho que, por isso, postergava a decisão que fatalmente teria que tomar um dia.

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De qualquer maneira, estranhei a forma radical e simplista de solucionar um problema de tamanha magnitude. Carola estava longe de ser apenas uma peça decorativa, um robô que respondesse às minhas ordens ao simples toque de um botão. Pra piorar, eu entendia tudo aquilo como uma invasão desrespeitosa e arbitrária da sua intimidade.

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Fiquei incomodada com a abordagem, que me pegara de surpresa, e resolvi jogar pesado com a minha consciência. Mais uma vez, eu me encontrava na linha de frente de uma guerra pessoal. Havia me esquecido de que determinadas intercorrências fazem parte de um processo natural a que todos os pais de crianças especiais se submetem. E que esse tipo de tormento me acompanharia até o fim dos meus dias.

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Saímos, Carola e eu, do ginecologista, com a receita do anticoncepcional nas mãos. Comprimidos diários, ingeridos sem interrupção, funcionariam como preventivo de uma gravidez indesejada e interromperiam um fluxo menstrual generoso. Seria o fim das roupas manchadas, dos lençóis matizados, da higiene mal-feita, das cólicas freqüentes e das discussões recorrentes. De quebra, as pílulas mágicas me abençoariam com a graça da certeza.

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Não sei dizer quantas cartelas já foram utilizadas ao longo de todo esse tempo. Tenho apenas a certeza de que, com a prática deste procedimento, ela passou a menstruar uma ou duas vezes por ano. Não adquiriu sobrepeso ou efeitos colaterais. Além disso, conseguimos aliviar a pressão psicológica mensal que me tirava do sério. O recurso permitiu, também, a possibilidade do lazer e da natação a qualquer hora. Vira e mexe, lá vinha a choradeira infernal – desgaste desnecessário, provocado por um entendimento que ela não alcançava.

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Carola continua firme no projeto de ter um filho pra chamar de seu. Eu mantenho a velha cantilena, dissertando da forma mais explicativa possível sobre a sua falta de preparo para empreitada de tamanha monta. Correndo por fora, apareço dissertando sobre a minha pouquíssima vontade de me tornar mãe do meu neto.

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Outro dia, conversando com um amigo por quem tenho a maior admiração e respeito, enfatizei a necessidade de uma urgente decisão em relação ao episódio. Em sua simplicidade e sabedoria, que só os espíritas Kardecistas possuem, deixou-me um questionamento que, de acordo com suas palavras, seria apenas para efeito de reflexão. Me encolhi sem querer, esperando por uma observação que me levasse ao encontro de algum prejuízo moral ou ético. Ele, então, disparou.

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- Tudo bem, Eliana. Sei que você deve ter passado noites e noites acordada, procurando a melhor forma de resolver este impasse. A escolha é sua e ninguém pode discuti-la. Especialmente em se tratando de filhos portadores de necessidades especiais como a Carola, acho que a lei lhe outorga o direito supremo de tomar as decisões que achar convenientes. Mas você já parou pra pensar que esse desejo tão grande por um filho pode estar sinalizando um caminho mais curto para a libertação e redenção da Carola? É somente dela que estou falando agora!

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Fiquei ligeiramente zonza, mas consegui reorganizar meu raciocínio. Decidi refutar humildemente as interferências, lembrando-me de que pensamentos medrosos sugam uma grande quantidade de energia e drenam a capacidade de enxergar a situação da forma como ela se apresenta. Afinal, nada é definitivo no caso de anticoncepcionais: haveria sempre a possibilidade de um retrocesso.

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Determinei que teria que fazer as pazes com a imperfeição e que, dando por feita aquela escolha, encerrava mais um ciclo desgastante dos muitos que ainda me aguardavam. Deliberei, como ser imperfeito que sou, que tenho toda a chance e o direito de repetir os mesmos erros infinitas vezes, sem me culpar por algum fracasso. Lembrei-me, finalmente, de que errar é humano; que, para minha sorte, Deus permitirá que esses mesmos erros sirvam de lição para outros pecadores, tão bem intencionados como eu. Em Sua infinita bondade, tenho a convicção, me concederá o perdão.

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"Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor" (Samuel Beckett)

segunda-feira, 10 de março de 2008

Reinventando a Natureza

No dia 18 de setembro de 1976, recebi a tão esperada encomenda. Em meio à confusão do embrulho, havia um envelope, acompanhado de um documento em que se lia: "Este projeto demandará mais tempo que o normal para ser desenvolvido. Deverá ser exaustivamente calculado e pressupõe detalhamento milimétrico para seu bom funcionamento e valorização do conjunto da obra. O material é nobre, embora reclame orientação especializada e assessoria permanente". Achei curioso ter chegado sem a indicação do prazo de validade, num esboço que, à primeira vista, pareceu-me incompleto.
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Um mês após a entrega do material, foi iniciado o "Programa Reconstrução" – operação que visava à implantação de uma nova consciência. Seria necessária a criação de um Código de Posturas, caracterizado pela interdisciplinaridade e baseado em cinco eixos fundamentais: obras de melhoria estrutural, recursos especializados, revitalização das engrenagens defeituosas, valorização da diversidade e inclusão social.
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A previsão era de que os serviços fossem concluídos em módulos, levando-se em conta a instabilidade do tempo, a disposição da mão de obra e a utilização correta dos recursos. Cabia, também, ser realista a respeito da quantidade de energia, tempo e dinheiro que se estava disposto a investir. Além disso, que não fosse esquecido e a bem dos resultados, que a aprendizagem seria lenta, já que alguns funcionários eram iniciantes no assunto.
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De cara, fiquei frustrada com a entrega do material e com o que me foi apresentado. Decidi que já passava da hora de conversar com o representante. Afinal, eu precisava saber o porquê de tão grande vacilo. Não consegui uma resposta que me convencesse. Não adiantou nada reclamar. Ele me informou que, de vez em quando, saía alguma coisa de fábrica com pequenos defeitos e que eu não me esquecesse de que tudo havia sido esclarecido desde o nosso primeiro encontro. Que eu me lembrasse de que havíamos feito um pacto, onde não caberia uma rescisão e, muito menos, uma devolução. Aquele era um contrato de risco, aceito e acordado por ambas as partes.
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Levei algum tempo no processo de reconhecimento de cada peça; gastei outro tanto correndo atrás de soluções que, se não efetivas, minimizariam os desajustes provocados pelo ineficiente controle de qualidade. Irritei-me algumas dezenas de vezes na busca de um entendimento daquelas instruções enigmáticas. Solicitei a colaboração de pessoas que eu não conhecia, mas que, graças a Deus, souberam me orientar. Trabalhamos juntos tentando desvendar os mistérios do manuscrito. Aplicamos medidas certeiras, alcançando sucesso em algumas empreitadas. Outras não deram certo e foi preciso recomeçar o raciocínio.
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Hoje, depois de muito tempo, inaugurou-se uma fase mais tranqüila. Daqui pra frente espero ter que cuidar apenas da manutenção. A máquina vem funcionando direitinho. De vez em quando aparece um ou outro problema. Por sorte, e com alguma paciência, descobri que dá pra ajeitar. Dou-lhe uma boa azeitada e assim ela vai indo. Só é preciso ficar alerta ao menor sinal de perigo. As engrenagens teimam em querer pifar.
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Já fiz as pazes com o tal representante. Juntei os pedaços espalhados, liquidei faturas, avaliei débitos e venho acertando as contas para recompor a unidade perdida entre o que ele me impôs e o que eu própria escolhi. Passei a acreditar em coincidências felizes e acasos salvadores, apesar de todo o meu empenho. Pelo menos, parece que os indicadores apontam para esse lado. Carola já está em fase final de acabamento.
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“Problemas não devem ser ignorados. Há sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever nossas estruturas, internas e externas: o que posso resolver? O que devo esquecer ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para enxergar outras coisas, coisas melhores?” (Lya Luft)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Ilusão de Ótica

Eu poderia jurar que, depois de tantas, ela não voltaria ao assunto “namoro e afins”. Já vinha e com força total, num trololó que me deixava de cabelo em pé. Dava pra ver que se perdia em devaneios e, aí, era batata. A história, com toda a certeza, ainda me renderia alguma preocupação. Afinal, fronteira é algo que deixa de existir para a Carola quando ela põe alguma idéia maluca na cabeça. E esse era um terreno cáustico e impiedoso. Contradição constante. Ameaça à tranqüilidade.

A excursão fazia parte do curso de férias. Sem ele, meu mês de julho tinha toda a chance de se tornar um inferno. Carola era “seca” numa rua. Por mais que eu tentasse segurá-la em casa ela se esquivava, dizendo que não era passarinho pra viver presa na gaiola. Então, mais uma vez e na tentativa de burlar sua intransigência, matriculei-a na escola já conhecida. Ela se distrairia e eu ficaria tranqüila, tocando meus afazeres.

A bendita programação incluía um passeio aqui pertinho da cidade, com piscinada, almoço campestre e atividades de lazer, de acordo com as dificuldades da moçada. Para fechar a temporada com a tranqüilidade reforçada, alguns monitores estariam presentes, garantindo a segurança e o entretenimento, sem perigo de sumiços e quedas. A assistência seria total. O cuidado, permanente. Tudo acertado em detalhes para que o dia fosse só alegria.

Carola voltou pra casa encantada com o Luizão. Quem é essa figura? – perguntava eu, já irritada com o andamento da prosa e o calor da emoção. Ela, esperta que só e sem ocultar o interesse, contava que ele fazia parte do grupo de apoio aos participantes da colônia de férias. Conversa vai, conversa vem, acabei descobrindo que o rapaz já era um homem feito e desconfiei, naturalmente, da bilateralidade do interesse.

Iniciei a sabatina com a certeza de que não chegaria a lugar algum. Ainda assim, disse a ela que o interesse não passava de um romance de verão. Que o rapaz poderia ser até muito bonzinho, e que o fato de tê-la tratado com carinho e atenção não justificava uma paixonite como aquela. Foi aí que ela me veio com a história de que o Luizão era um pouco moreninho, indagando se era por isso que eu não aprovava o namoro. Minhas justificativas foram insuficientes para convencê-la de que nada naquele episódio acabaria em boa coisa.

Preparei-me para os questionamentos vazios, sua pouca ou nenhuma boa vontade em entender minhas explicações e esperei pelo prejuízo. Resolvi investir num formato diferente, tentando, a partir disso, encurtar a distância entre o seu azedume e o meu bom senso. Com preguiça do que vinha contra mim, fiz questão de não questionar limites, propor reflexões, levantar questões: “desprogramei” meus padrões de crença. Fosse o que Deus quisesse!

Ela acordou cantando e passou a manhã inteira com uma música na cabeça. Tenho pra mim que aquela devia ser “a música do casal”. Será que, com o meu mutismo, eu inaugurava um novo tempo? Um tempo de trégua, de complacência amorosa, de paciência? Ou será que eu não havia percebido ainda que o velho, disfarçado de novo, reaparecia para me mostrar as mesmas coisas sob uma ótica diferente?

Naquela sua simplicidade infantil, bem distante de todas as minhas dúvidas e me relegando à condição de eterna coadjuvante, sentenciou:

- Mãe, eu pensei bastante essa noite e cheguei à conclusão de que não vou namorar o Luizão. Sabe lá se eu caso com ele e de repente a gente tem um monte de filhos, tudo xadrez? Ai, não quero não!

“O verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e descobre novas maneiras de se expressar”.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O sal doce da vida

Seria bom demais se a gente pudesse ter sempre ao nosso lado alguém que dissesse como criar bem os filhos. Como agir nas desventuras, nos momentos de dor, nos processos que envolvem doenças e grandes aflições. Também seria legal se nos ensinassem fórmulas mágicas para sairmos do fundo do poço, conservando altruísmo e coragem suficientes para encarar novos desafios, depois de mais uma rebordosa da vida.

Precisei de algum tempo na estrada até entender que filho vem mesmo sem manual de instrução, sobretudo os especiais, como a Carola. Entender que eu precisaria de uma força extra e alguma habilidade pra dissecar feridas profundas como se elas fossem meros arranhões.

Não, nem Freud estaria em condições de explicar o sentimento de impotência gerado pelas peças que a vida me pregava. Meu caso agora exigia a intervenção de alguém mais bem preparado, muitas vezes mais lúcido e extremamente pródigo comigo. Alguém que me respondesse como é que se faz pra não morrer de tanto chorar, pra não perder definitivamente a paciência e fugir pra qualquer lugar.

Volta e meia éramos surpreendidos por mais um episódio de conseqüências penosas, quase surreais. Era incrível como as coisas aconteciam em série com a nossa filha. Seu organismo me parecia frágil. Eu vivia atenta e me desdobrava em cuidados, na expectativa de que se fortalecesse. Achava que assim seria possível driblar algumas doenças oportunistas e uma trégua fosse inaugurada, pondo fim aos episódios sorrateiros que nos pegavam de surpresa. Com a confiança possível, tocava o meu projeto, ainda que fosse possível ouvir os ecos de um desassossego permanente.

Do nada, era uma unha que amanhecia infeccionada e precisava ser retirada; uma conta colocada propositalmente por ela dentro do ouvido sem que eu percebesse, iniciando um processo inflamatório de grande repercussão. Um ralado na coxa que, repentinamente, virava uma ferida aberta a purgar sem parar. Eu sabia que fatalmente tudo seria tratado da mesma maneira: anestesia geral sem chance de qualquer outro tipo de intervenção. Os anos de tratamentos intensivos deixaram sua seqüela manifestada sob a forma de um pavor crônico por roupas brancas, macas e o cheiro hospitalar.

Depois de muitos pedidos e a promessa de um acompanhamento lado a lado, consegui do seu pediatra a indulgência de mantê-la sob meus cuidados, em casa. Fui alertada de que tratar gastrenterite fora do hospital era, no mínimo, o caminho mais rápido para um desenlace de péssimas conseqüências. Mas resolvi mais uma vez arriscar, acreditando que o meu amor de mãe e todo o meu empenho seriam a garantia de mais tranqüilidade para minha filha. Assumi a responsabilidade do desfecho, qualquer que fosse ele.

Um cheiro podre tomava conta do ambiente. Fraldas pesadas eram trocadas em curtos espaços de tempo. O azedo dos vômitos me obrigava a abrir as janelas de todos os quartos da casa para que o cheiro se dissipasse mais rapidamente. Carola se mantinha inerte na minha cama e, já sem forças, quase não chorava. Eu a mantinha hidratada com pequenos goles de “Pedyalite”, tomados vagarosamente com uma colherzinha de chá. Do seu lado permaneci, dias e noites, cumprindo aquele ritual já conhecido.

O quadro se manteve inalterado até que, depois do terceiro dia, me veio uma leve impressão de que ela começava a dar sinais de cansaço. Considerei o risco e assumi com a força que me restava os encargos da minha opção. Tinha a certeza de que tudo havia sido feito e que eu tinha dado o melhor de mim. Seus olhos morteiros deixavam transparecer uma névoa branca e embaçada. Lembrei-me com bastante clareza de quando ainda eram alegres e vivos.

Chamei minha mãe, minha irmã e, numa ciranda solidária, nos demos as mãos. Pedimos orientação e força para que a vontade de Deus fosse feita. Nos entregamos, coração pequeno e alma aflita, para que Ele nos desse a resignação necessária por mais essa vez. Assim, e em silêncio, ficamos aguardando o desfecho daquele episódio. Rezando e entregando nosso bem maior, deixamos que a nossa força cumprisse o papel de fortalecê-la naquele momento.

Foi quando sentimos um ligeiro tremor naquele pequeno corpo. Abrimos os olhos e nos deparamos com uma criança que saia de seu torpor, sorrindo mansamente como se a vida a tomasse nos braços novamente. Choramos muito e, quase não acreditando, nos pusemos a rezar, agora em agradecimento pela nova oportunidade. Daí para frente, fomos surpreendidos por uma melhora crescente, até o seu total restabelecimento.

Perdendo-me mais uma vez num emaranhado de cogitações filosóficas, cheguei à conclusão de que a vida é uma eterna corrida de obstáculos. Não há garantias de que as coisas estarão sempre bem. Em contrapartida, temos que continuar sem nos ater aos percalços, aproveitando os bons momentos como se eles fossem únicos.

É esperar que o bom senso e a vontade de viver vençam a perplexidade dos acontecimentos, reduzindo nosso sofrimento inútil. Até porque, afinal, entra dia e sai dia, nossa existência não deixa de ser uma seqüência de problemas vencidos. E lá vamos nós, pelejando e lutando nesse cabo-de-guerra, às vezes ganhando, às vezes perdendo. Mas sempre tentando sorrir.


“Evitemos o desespero em suaves cotas, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o do simples ato de respirar.”

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Teje presa!

Era um dia da semana como outro qualquer. Eu pressentia alguma dificuldade pela frente, mas ir àquele evento era mais que obrigatório. Era trabalho sério que envolvia uma estratégia funcional da empresa onde meu marido trabalhava. Resultados positivos da negociação sinalizariam o sucesso da empreitada. Para quem vivia de alcançar metas pré-estabelecidas, fechar a cota de objetivo de vendas significava arrojo, desempenho e dinheiro extra.

Só pra complicar, aquele também era o dia em que se comemoraria mais um ano de sacerdócio do padre Landinho. Também era óbvio que a Carola fazia questão de ir até a igreja para a celebração da missa em ação de graças. Como não conseguimos alguém que lhe fizesse companhia até o nosso retorno, consideramos inevitável dizer a ela que, dessa vez, não seria possível prestar sua homenagem ao reverendo. Tentei convencê-la de que bastava rezar em casa para que suas orações fossem ouvidas e o padre fosse aquinhoado com mais uma benção. Chamei sua atenção para a programação interessante da TV, de como era legal jogar paciência e dos milhões de alternativas oferecidas pela Internet. Nada surtiu efeito.

Desisti de buscar novas alternativas depois de tantas ofertas em vão. Mais uma vez ela insistia naquela história das chaves da casa. Por que não podia ter uma se até o Guilherme, que era mais novo que ela, já se utilizava da sua há tempos? Voltei ao velho e desgastado discurso: sua irresponsabilidade nos cuidados com o molho de chaves. Tinha medo que alguém pudesse perceber sua vulnerabilidade, obrigando-a a abrir o apartamento. Isso sem falar em todos os outros problemas que povoavam nossas cabeças. Ela se rebelou, esbravejou e, à revelia dos meus apelos, chorou bem alto pra que todos os vizinhos a ouvissem. Essa era sua fórmula mágica de chamar a atenção de todo mundo. Insistia no respeito aos seus direitos e, me ameaçando, jurou se vingar.

Depois de muitos anos de luta interna, tabefes e castigos sem sucesso, concluí que em alguns momentos, o melhor era não discutir. Aplicaria a ordem sem explicar demais, até porque, não adiantava. Ela não cedia nunca. Aprendi que, se diminuísse o ritmo de minhas ponderações, evitaria respostas impertinentes. Então, apelei para os meus santos de fé e pedi a única coisa possível: muita paciência! Resumia-se nela a chance de ficar mais calma e em paz comigo mesma.

Foi assim que resolvi separar minha roupa para o evento, tomando o cuidado – fundamental – de trancar a porta do quarto. Liguei a televisão mais alto que o recomendável pra não ter que escutar o drama que acontecia do lado de fora. Quase não escutei as batidas firmes na porta. Abri. Lá estava ela com ar de desafio e malícia no canto da boca. Mãos na cintura, balançava os quadris numa forma clássica de intimidação. Convidava-me gentilmente a atender ao telefone e falar com um sujeito que eu não conhecia.

Confirmei o nome, endereço, bairro, CEP, estado civil, identidade e CPF. O indivíduo falava com voz de gângster e se dizia responsável pela Divisão de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente. Suas perguntas tinham o objetivo velado de me constranger e me embaraçar. Respondi a todas elas com a tranqüilidade possível, impressionada com o acréscimo de fatos que não haviam acontecido.

Carola me fitava sorrindo, com ar de vitória. Devolvi e sustentei seu olhar, decidindo por colocar ponto final àquela lambança. Perguntei ao tal Dr. Eponino se ela havia lhe informado sua idade. Ele disse que não, mas que estava francamente comovido com todo aquele relato surpreendente. Intrigada com a observação, passei rapidamente à certeza das intenções de Carola. Precisava reverter o quadro a meu favor, uma vez que estava certa da decisão que havia tomado.

Rapidamente, passei de suspeita à vítima quando resolvi questioná-lo se, no papel de pai de uma menina com necessidades especiais, teria a coragem de confiar-lhe as chaves de sua casa. Negou, questionou, especulou bastante até que, se desculpando, pediu que eu passasse o telefone para a querelante.

Obedeci prontamente e, olhando bem dentro dos seus olhos, devolvi o conhecido balanço dos quadris. Passei o telefone com falsa gentileza. Ela gesticulava nervosa, tentando explicar alguma coisa para ele. Enquanto isso, Dr. Eponino falava sem respirar, emendando um discurso no outro, sem lhe dar a chance de sequer abrir a boca. Até que ele apelou, desligando o telefone sem mais explicações. Quebrou-se o encanto. O potencial para o conflito se instalara e, então, começou tudo de novo.

Irritada, finalizei aquela conversa fiada, lembrando-a de que lá em casa quem mandava era eu. E que ela não perdesse tempo em quedas de braço inúteis. Eu era mais forte e provavelmente ganharia a parada. Exausta, fiquei pensando que, se baseássemos nosso amor no comportamento das crianças, seria muito difícil amá-las.

Na maioria das vezes, sem saber como lidar com as situações, somos obrigados a inventar novos recursos. Precisamos da nossa infalível sensibilidade para enxergar além das diferenças do outro e encontrar a maneira menos penosa de trilharmos juntos o caminho. Quase sempre, essa é uma receita que funciona bem e vale para todas as mães, em algum momento de suas vidas. Tem sido valiosa para mim e costuma não desandar.


“Só quem está no front sabe enfrentar a guerra de todos os dias.”

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Férias de Verão

O sol era convidativo. O céu se tingiu de um azul que não deixava dúvida: o dia seria mais uma vez lindo. As férias tinham finalmente chegado e a oportunidade era ideal para que eu me distraísse, depois de um ano de peleja.

Claro, o trabalho de alguma forma permanecia, cobrando o seu preço com juros. Mas era melhor que fosse lá, em Cabo Frio, onde eu não precisava de me preocupar com a intendência doméstica e o horário escravo. Alguém faria isso por mim. Salve a mordomia! – essa delícia que faz bem a todos nós.

O hotel ficava perto da praia, o que facilitava nossa movimentação. Os meninos ainda eram pequenos. Carola devia estar com uns dez anos e o Gui, com oito pra nove. Como sempre fazíamos, orientamos nossos filhos sobre os cuidados com o mar, as pessoas com quem conversavam e a atenção, que deveria estar sempre voltada para nós.

O nome do hotel só foi decorado depois de uma sabatina que rendeu alguns minutos. Para termos a certeza de que estavam com ele na ponta da língua, surgíamos do nada com a pergunta – prontamente respondida. Já haviam decorado e, em gracejos, repetiam de quando em vez, esperando nossa aprovação e aplauso.

Minha paixão pelo sol só fez aumentar a expectativa. Cravamos o guarda-sol na areia, procurando o ângulo perfeito contra os raios escaldantes. O colorido arregalado podia ser visto sem grandes dificuldades por olhos atentos. Perdemos algum tempo explicando aos dois a nossa posição e colocando os apetrechos bem em frente a um ponto de referência conhecido por todos. Tudo acertado e bem entendido. Tudo garantido para que o nosso tempo na praia fosse apenas de lazer e alegria.

Nossos amigos, por sua vez, chegaram com seus filhos e alegremente se juntaram a nós. Aquela combinação era antiga. Volta e meia viajávamos juntos, dividindo a amizade e a companhia. Era bom perceber que as crianças cresciam criando vínculos de afeto e companheirismo - isso reforçava nossos laços. Dividíamos também os cuidados com as crianças, percebendo as necessidades de cada uma delas e mantendo os olhos bem abertos para que estivessem sempre ao nosso lado.

Eu buscava a beleza do mar, atenta ao vai-e-vem da moçada colorida, sentindo a sensação de liberdade que procurava por todo o ano e aguardava com ansiedade incontida. O sol, generoso, cobria meu corpo de luz trazendo uma energia que me restabelecia, apaziguando minhas dores e injetando força pra mais um ano. Tínhamos, eu e ele, um acordo tácito que apenas o cosmo poderia explicar. Sou carente de sua força e, sem que perceba, ando sempre à procura de seus raios milagrosos.

Foi aí que aconteceu. Em questão de segundos, Carola desapareceu. Ninguém sabe, ninguém viu. O pavor tomou conta de mim. Paralisada pelo susto, não sabia por onde começar a procura. Resolvemos nos dividir em duas frentes de trabalho: uns iriam para a direita e os outros, na direção oposta. Eu rezava e pedia compaixão para aquele Deus, meu velho conhecido e a quem eu recorria sempre com a mesma urgência, infinitas vezes.

A praia apinhada de gente fazia vista grossa para o nosso desespero. Meus olhos procuravam, diligentes, enquanto lágrimas me faziam perder o foco. Eu já não sabia quem eu era. Perdera a noção do tempo e do espaço. Só pedia força pra dar conta de algo que me negava a encarar. Olhava para a água e para a areia com medo de enxergar pequenas aglomerações. Fiquei dividida entre o alívio do encontro e o pavor da descoberta. Não, eu não podia estar vivendo um drama daquelas proporções. De novo, não.

Acho que perambulei pela praia durante aproximadamente uma hora. Encontrei Carola debaixo de uma barraca em altos papos com uma dupla de velhinhas. Elas pareciam tranqüilas e pude perceber o cuidado e o carinho que dispensavam à minha filha. Feliz, Carola tomava uma coca-cola e gesticulava como se o assunto fosse muito interessante.

Com a pele sapecada e vermelha como um pimentão, não se assustou quando me viu chegar. As duas senhorinhas se apressaram em dizer que a recolheram ao perceber que estava sozinha. Dando apenas um tempo para que ela descansasse e se refrescasse um pouquinho, diziam-se prontas para levá-la até o hotel. Agradeci muitíssimo todo o carinho, descartando a oferta, louca para sair correndo e dar a notícia salvadora pro resto do pessoal.

Depois de muito chororô, abraços e beijinhos, voltamos ao hotel para um banho reconfortante. Almoçamos quase na hora do jantar e, exaustos, fomos dormir mais cedo que o normal, aliviados e bambos depois de toda aquela adrenalina. Nossa noite, contudo, não foi reparadora como desejáramos. Passamos por ela em meio a compressas de água fria, muito líquido e remédios para abaixar uma febre renitente.

A Carola e o Gui tiveram um início de insolação, depois de tanto sol na moleira. Evitamos a praia até que as coisas entrassem nos eixos novamente. Encerramos nossa temporada praiana com algumas peles se soltando precocemente e alguns lamentos de frustração. Mesmo assim, deixamos o encontro no próximo ano acertado previamente com nossos amigos e com o dono do hotel, que prometeu, ele mesmo, confeccionar crachás de identificação para seus pequenos hóspedes. O susto havia sido grande demais. Então... até lá!


“Jamais deixe que as dúvidas paralisem suas ações. Tome sempre todas as decisões que precisar tomar, mesmo sem ter a segurança de estar decidindo corretamente.” (Paulo Coelho)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Côncavo e Convexo

Carola devia estar com uns vinte e três anos. Chegou, certo dia, me confidenciando com um sorriso malicioso o interesse por um colega do curso médio. Era encantada com aquele menino clarinho de olhos azuis, espinhas no rosto, fino e comprido como um caniço. Mancava de uma perna e tinha a mão um pouco torta, resultado de algum tipo de paralisia. Tentei dissuadi-la da idéia de namorar alguém tão comprometido. Ela resistiu indignada, dizendo que só eu enxergava aquelas coisas. Queria que eu notasse como ele era esforçado e que, além do mais, não tinha culpa de ter nascido daquele jeito.

Deixei que o tempo se encarregasse daquilo que eu não conseguia resolver. A coisa não foi muito longe e, quando terminou, dei graças a Deus. Ficou por conta de um amor platônico de vida breve. Até que ela me veio com a história de que o cupido havia flechado seu coração novamente. Fiquei imaginando a próxima vítima e o novo desafio que tinha pela frente. Nessa brincadeira, a coisa muda de figura radicalmente: acabamos arranjando mais um filho para tomar conta.
Tranqüilizei-me quando soube que o pretendente era o Vaguinho. Eu tivera a oportunidade de conhecer seus pais – sabia que se tratava de um rapaz educado, de boa aparência e hábitos semelhantes aos nossos. Eram colegas na escola profissionalizante e se davam muito bem, dentro e fora dela. Carola estava com vinte e seis anos. Quatro anos mais velho que ela, Vaguinho tinha lá suas dificuldades de aprendizagem, muito bem camufladas por uma mobilidade que lhe garantia total independência.
Saber que nossos filhos, portadores de algum grau de dependência, estão convivendo com pessoas que têm os mesmos princípios é fundamental. Isso sinaliza que a família está empenhada em estabelecer regras básicas, determinando limites, atenta ao comportamento e ao limiar de censura do indivíduo. É muito importante o intercâmbio de informações entre os pais ou responsáveis. O perfil de cada um deles deve ser descrito com riqueza de detalhes; só assim estaremos preparados para contornar situações de risco, entender as características de sua personalidade e provável reação diante dos estímulos. No nosso caso, uma das maiores dificuldades da Carola era a sua pouca ou nenhuma capacidade em administrar frustrações.

Eles formavam um casal interessante. Pareciam ser a extensão um do outro. Carola, naquela sua aparência de menina, beleza brejeira e corpo recortado, estava sempre antenada nos últimos acontecimentos. Assim, era o suporte ideal para dar vazão à independência de Vaguinho. Ele, por sua vez, já havia parado de estudar há tempos e precisava de alguém que tomasse a iniciativa de recorrer aos conhecimentos que lhe faltavam. Foi assim que decidiram ir a uma peça teatral, que seria apresentada no Teatro Alterosa.

Mergulhei fundo na psicologia, abrindo espaço para o silêncio reflexivo. Deixei que eles resolvessem como fazer, sem a minha interferência. Queria avaliar a capacidade de ação e o potencial de cada um. Vaguinho assegurou saber locomover-se pela cidade sem perigo de vacilo. Precisava apenas que alguém descobrisse o endereço. Atrapalhava-se na busca de informações e não era acostumado ao manuseio do catálogo de telefone. Sem pestanejar, Carola folheou as páginas até encontrar o que procurava. Ligou para o teatro, anotando o endereço. Explicou onde morava, perguntou sobre os ônibus que teriam que pegar, seu número e em que rua desceriam para chegar até lá. Tudo anotado, dinheiro no bolso e lá foram eles, felizes da vida.

Partiram de mãos dadas para aquele seu novo ensaio. Fiquei preocupada com o desfecho da aventura, mas consegui segurar minha ansiedade. Cada nova experiência nos deixa aflitos e nos sentimos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de nossos filhos. Tampouco deve sobrar espaço para que o medo nos imobilize; afinal, é também nossa tarefa prepará-los para a vida.
Voltaram ao final da tarde, radiantes. Adoraram a peça infantil e, às gargalhadas, contavam os detalhes de cada cena em meio a gestos e caretas. Aquela foi uma viagem sem incidentes, que serviu para deixá-los mais seguros e confiantes em suas habilidades. Já estavam fazendo planos para uma próxima incursão. Na grade de possibilidades, uma lista que começava por um passeio pelo parque das Mangabeiras, passava pelo Shopping 5ª Avenida e terminava numa quermesse patrocinada pela igreja.

O namoro não durou muito tempo. Vaguinho resolveu trocar de namorada como quem troca de roupa. Carola chorou, lamentou a perda e, indignada, discutiu a aparência duvidosa da rival. Consegui persuadi-la dizendo que isso era o que acontecia com todo mundo, e que ela não era diferente de ninguém. Além do mais, já poderia dizer que sabia o que era namorar. Então, que deixasse o Vaguinho pra lá e fosse viver sua vida, feliz como sempre fora. E ela, que arrumava desculpa pra tudo, arrematou enxugando as lágrimas:

- É mesmo, mãe. Bem feito pra ele. Trocou essa gatinha aqui por aquele bagulho. Olha bem pra mim: quem é que tem um cabelo pretinho e brilhante como o meu? E um corpinho enxuto feito o meu? Eu sou muito mais bonitinha que ela. Você quer saber mãe? Pra mim, chega de namoro. Esse negócio dá um trabalho danado!

Respirei aliviada. Eu estava salva, até a próxima vez.

"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem".