quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Férias de Verão

O sol era convidativo. O céu se tingiu de um azul que não deixava dúvida: o dia seria mais uma vez lindo. As férias tinham finalmente chegado e a oportunidade era ideal para que eu me distraísse, depois de um ano de peleja.

Claro, o trabalho de alguma forma permanecia, cobrando o seu preço com juros. Mas era melhor que fosse lá, em Cabo Frio, onde eu não precisava de me preocupar com a intendência doméstica e o horário escravo. Alguém faria isso por mim. Salve a mordomia! – essa delícia que faz bem a todos nós.

O hotel ficava perto da praia, o que facilitava nossa movimentação. Os meninos ainda eram pequenos. Carola devia estar com uns dez anos e o Gui, com oito pra nove. Como sempre fazíamos, orientamos nossos filhos sobre os cuidados com o mar, as pessoas com quem conversavam e a atenção, que deveria estar sempre voltada para nós.

O nome do hotel só foi decorado depois de uma sabatina que rendeu alguns minutos. Para termos a certeza de que estavam com ele na ponta da língua, surgíamos do nada com a pergunta – prontamente respondida. Já haviam decorado e, em gracejos, repetiam de quando em vez, esperando nossa aprovação e aplauso.

Minha paixão pelo sol só fez aumentar a expectativa. Cravamos o guarda-sol na areia, procurando o ângulo perfeito contra os raios escaldantes. O colorido arregalado podia ser visto sem grandes dificuldades por olhos atentos. Perdemos algum tempo explicando aos dois a nossa posição e colocando os apetrechos bem em frente a um ponto de referência conhecido por todos. Tudo acertado e bem entendido. Tudo garantido para que o nosso tempo na praia fosse apenas de lazer e alegria.

Nossos amigos, por sua vez, chegaram com seus filhos e alegremente se juntaram a nós. Aquela combinação era antiga. Volta e meia viajávamos juntos, dividindo a amizade e a companhia. Era bom perceber que as crianças cresciam criando vínculos de afeto e companheirismo - isso reforçava nossos laços. Dividíamos também os cuidados com as crianças, percebendo as necessidades de cada uma delas e mantendo os olhos bem abertos para que estivessem sempre ao nosso lado.

Eu buscava a beleza do mar, atenta ao vai-e-vem da moçada colorida, sentindo a sensação de liberdade que procurava por todo o ano e aguardava com ansiedade incontida. O sol, generoso, cobria meu corpo de luz trazendo uma energia que me restabelecia, apaziguando minhas dores e injetando força pra mais um ano. Tínhamos, eu e ele, um acordo tácito que apenas o cosmo poderia explicar. Sou carente de sua força e, sem que perceba, ando sempre à procura de seus raios milagrosos.

Foi aí que aconteceu. Em questão de segundos, Carola desapareceu. Ninguém sabe, ninguém viu. O pavor tomou conta de mim. Paralisada pelo susto, não sabia por onde começar a procura. Resolvemos nos dividir em duas frentes de trabalho: uns iriam para a direita e os outros, na direção oposta. Eu rezava e pedia compaixão para aquele Deus, meu velho conhecido e a quem eu recorria sempre com a mesma urgência, infinitas vezes.

A praia apinhada de gente fazia vista grossa para o nosso desespero. Meus olhos procuravam, diligentes, enquanto lágrimas me faziam perder o foco. Eu já não sabia quem eu era. Perdera a noção do tempo e do espaço. Só pedia força pra dar conta de algo que me negava a encarar. Olhava para a água e para a areia com medo de enxergar pequenas aglomerações. Fiquei dividida entre o alívio do encontro e o pavor da descoberta. Não, eu não podia estar vivendo um drama daquelas proporções. De novo, não.

Acho que perambulei pela praia durante aproximadamente uma hora. Encontrei Carola debaixo de uma barraca em altos papos com uma dupla de velhinhas. Elas pareciam tranqüilas e pude perceber o cuidado e o carinho que dispensavam à minha filha. Feliz, Carola tomava uma coca-cola e gesticulava como se o assunto fosse muito interessante.

Com a pele sapecada e vermelha como um pimentão, não se assustou quando me viu chegar. As duas senhorinhas se apressaram em dizer que a recolheram ao perceber que estava sozinha. Dando apenas um tempo para que ela descansasse e se refrescasse um pouquinho, diziam-se prontas para levá-la até o hotel. Agradeci muitíssimo todo o carinho, descartando a oferta, louca para sair correndo e dar a notícia salvadora pro resto do pessoal.

Depois de muito chororô, abraços e beijinhos, voltamos ao hotel para um banho reconfortante. Almoçamos quase na hora do jantar e, exaustos, fomos dormir mais cedo que o normal, aliviados e bambos depois de toda aquela adrenalina. Nossa noite, contudo, não foi reparadora como desejáramos. Passamos por ela em meio a compressas de água fria, muito líquido e remédios para abaixar uma febre renitente.

A Carola e o Gui tiveram um início de insolação, depois de tanto sol na moleira. Evitamos a praia até que as coisas entrassem nos eixos novamente. Encerramos nossa temporada praiana com algumas peles se soltando precocemente e alguns lamentos de frustração. Mesmo assim, deixamos o encontro no próximo ano acertado previamente com nossos amigos e com o dono do hotel, que prometeu, ele mesmo, confeccionar crachás de identificação para seus pequenos hóspedes. O susto havia sido grande demais. Então... até lá!


“Jamais deixe que as dúvidas paralisem suas ações. Tome sempre todas as decisões que precisar tomar, mesmo sem ter a segurança de estar decidindo corretamente.” (Paulo Coelho)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Côncavo e Convexo

Carola devia estar com uns vinte e três anos. Chegou, certo dia, me confidenciando com um sorriso malicioso o interesse por um colega do curso médio. Era encantada com aquele menino clarinho de olhos azuis, espinhas no rosto, fino e comprido como um caniço. Mancava de uma perna e tinha a mão um pouco torta, resultado de algum tipo de paralisia. Tentei dissuadi-la da idéia de namorar alguém tão comprometido. Ela resistiu indignada, dizendo que só eu enxergava aquelas coisas. Queria que eu notasse como ele era esforçado e que, além do mais, não tinha culpa de ter nascido daquele jeito.

Deixei que o tempo se encarregasse daquilo que eu não conseguia resolver. A coisa não foi muito longe e, quando terminou, dei graças a Deus. Ficou por conta de um amor platônico de vida breve. Até que ela me veio com a história de que o cupido havia flechado seu coração novamente. Fiquei imaginando a próxima vítima e o novo desafio que tinha pela frente. Nessa brincadeira, a coisa muda de figura radicalmente: acabamos arranjando mais um filho para tomar conta.
Tranqüilizei-me quando soube que o pretendente era o Vaguinho. Eu tivera a oportunidade de conhecer seus pais – sabia que se tratava de um rapaz educado, de boa aparência e hábitos semelhantes aos nossos. Eram colegas na escola profissionalizante e se davam muito bem, dentro e fora dela. Carola estava com vinte e seis anos. Quatro anos mais velho que ela, Vaguinho tinha lá suas dificuldades de aprendizagem, muito bem camufladas por uma mobilidade que lhe garantia total independência.
Saber que nossos filhos, portadores de algum grau de dependência, estão convivendo com pessoas que têm os mesmos princípios é fundamental. Isso sinaliza que a família está empenhada em estabelecer regras básicas, determinando limites, atenta ao comportamento e ao limiar de censura do indivíduo. É muito importante o intercâmbio de informações entre os pais ou responsáveis. O perfil de cada um deles deve ser descrito com riqueza de detalhes; só assim estaremos preparados para contornar situações de risco, entender as características de sua personalidade e provável reação diante dos estímulos. No nosso caso, uma das maiores dificuldades da Carola era a sua pouca ou nenhuma capacidade em administrar frustrações.

Eles formavam um casal interessante. Pareciam ser a extensão um do outro. Carola, naquela sua aparência de menina, beleza brejeira e corpo recortado, estava sempre antenada nos últimos acontecimentos. Assim, era o suporte ideal para dar vazão à independência de Vaguinho. Ele, por sua vez, já havia parado de estudar há tempos e precisava de alguém que tomasse a iniciativa de recorrer aos conhecimentos que lhe faltavam. Foi assim que decidiram ir a uma peça teatral, que seria apresentada no Teatro Alterosa.

Mergulhei fundo na psicologia, abrindo espaço para o silêncio reflexivo. Deixei que eles resolvessem como fazer, sem a minha interferência. Queria avaliar a capacidade de ação e o potencial de cada um. Vaguinho assegurou saber locomover-se pela cidade sem perigo de vacilo. Precisava apenas que alguém descobrisse o endereço. Atrapalhava-se na busca de informações e não era acostumado ao manuseio do catálogo de telefone. Sem pestanejar, Carola folheou as páginas até encontrar o que procurava. Ligou para o teatro, anotando o endereço. Explicou onde morava, perguntou sobre os ônibus que teriam que pegar, seu número e em que rua desceriam para chegar até lá. Tudo anotado, dinheiro no bolso e lá foram eles, felizes da vida.

Partiram de mãos dadas para aquele seu novo ensaio. Fiquei preocupada com o desfecho da aventura, mas consegui segurar minha ansiedade. Cada nova experiência nos deixa aflitos e nos sentimos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de nossos filhos. Tampouco deve sobrar espaço para que o medo nos imobilize; afinal, é também nossa tarefa prepará-los para a vida.
Voltaram ao final da tarde, radiantes. Adoraram a peça infantil e, às gargalhadas, contavam os detalhes de cada cena em meio a gestos e caretas. Aquela foi uma viagem sem incidentes, que serviu para deixá-los mais seguros e confiantes em suas habilidades. Já estavam fazendo planos para uma próxima incursão. Na grade de possibilidades, uma lista que começava por um passeio pelo parque das Mangabeiras, passava pelo Shopping 5ª Avenida e terminava numa quermesse patrocinada pela igreja.

O namoro não durou muito tempo. Vaguinho resolveu trocar de namorada como quem troca de roupa. Carola chorou, lamentou a perda e, indignada, discutiu a aparência duvidosa da rival. Consegui persuadi-la dizendo que isso era o que acontecia com todo mundo, e que ela não era diferente de ninguém. Além do mais, já poderia dizer que sabia o que era namorar. Então, que deixasse o Vaguinho pra lá e fosse viver sua vida, feliz como sempre fora. E ela, que arrumava desculpa pra tudo, arrematou enxugando as lágrimas:

- É mesmo, mãe. Bem feito pra ele. Trocou essa gatinha aqui por aquele bagulho. Olha bem pra mim: quem é que tem um cabelo pretinho e brilhante como o meu? E um corpinho enxuto feito o meu? Eu sou muito mais bonitinha que ela. Você quer saber mãe? Pra mim, chega de namoro. Esse negócio dá um trabalho danado!

Respirei aliviada. Eu estava salva, até a próxima vez.

"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem".