quarta-feira, 22 de julho de 2009

Boas notícias

Olá, amigos.

Desculpem-me por estar um pouco sumida. É que estou trabalhando em horário integral e cada dia com mais atribuições e responsabilidades.

No entanto, o projeto deste blog continua! Pretendo voltar a postar com mais freqüência e, quem sabe, realizar um dia meu sonho de publicar um livro.

Tenho boas notícias!

A Carola anda toda importante, e já andou espalhando, no mínimo, pra toda a torcida do Maracanã. Vai começar a trabalhar no dia 03/08, e com direito a carteira assinada! O mais interessante é que foi tudo por sua própria iniciativa. Há tempos ela fala em arrumar um serviço. Diz que precisa trabalhar e ajudar nas despesas da casa, já que o pai está aposentado e que eu não posso ralar sozinha.

Passando pelo Carrefour do nosso bairro, ela viu um cartaz que oferecia vagas para portadores de necessidades especiais. Era tudo o que ela queria! Procurou o gerente e se informou sobre o regulamento. Correu em casa, abriu o computador e tirou uma cópia do seu currículo, por sinal muito bem bolado pelo Guilherme, e feito há algum tempo atrás. (Ela já andou entregando cópias para Bancos e lojas lá perto de casa.)

Voltou ao supermercado procurando pela gerente do RH. Entregou o dito cujo e o diploma de conclusão do segundo grau. Marcaram para o dia seguinte a dinâmica de grupo, que teria a duração de seis horas. Passou por essa etapa, e na saída, já foi convocada para a entrevista.

Passou também na entrevista e agora está esperando apenas pelo dia de começar a trabalhar como embaladora e recepcionista. A rua em que o Carrefour se localiza é paralela à nossa e a quatro quarteirões de casa.

Não preciso dizer que ela está se achando simplesmente o máximo. Parece que ganhou a mega-sena sozinha, e está certa de que todos nós estaremos tirando, definitivamente, o pé da lama.

Não sei quanto tempo vai durar este trabalho, mas não importa. A idéia é que ela possa abrir a janela e vivenciar um mundo novo e desconhecido (e que, provavelmente, vai também judiar um pouquinho dela). Talvez dure o tempo de uma bela espetada na coroa do abacaxi, ou até que a caixa de ovos se abra e caia tudo no chão. Ou até que ela se aborreça com o gerente que lhe dará ordens, cobrando resultados.

Beleza. Já dei uma panorâmica do comportamento a ser seguido e dos cuidados consigo mesma. O horário é apertado: das 11:00 às 20:00, com almoço incluído e na própria unidade. Ainda não sei quantos dias por semana.

Ah!, estava me esquecendo de um detalhe importantíssimo: o frisson da chegada do uniforme e do agasalho de frio, os quais ela anda descrevendo com detalhes, frufrus e fricotes. Na cabeça dela, eles fazem parte da última coleção do Kenzo. Uma verdadeira piada.

Então é isso, pessoal. Muitos beijos pra todos vocês. E sorte pra Carola nesta nova empreitada!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ponto Cego (3/3)

A semana passou aos trancos e barrancos, regada a muito desconforto, dores e choro. Eu estava mais pra alma penada do que pra gente. Estava exausta, com o emocional em frangalhos, e descobri como é duro exercitar a disciplina contra a imposição de um modelo perverso. Seguindo orientações, passamos, ao final deste tempo, pelo consultório do Doutor Irineu. Quase ressuscitei ao ouvir suas palavras animadoras e carregadas de genuína emoção.

Vi-me novamente naquele lugar tão conhecido, praticamente íntimo. O lugar onde eu me encontrava quase sempre, tentando entender o limiar entre consentimento e negação, depois de dias de sufoco. Até onde, ou quando, seria possível evitar mais uma tragédia? Lembro-me de alguém dizendo que “viver as experiências que a vida nos oferece é obrigatório; sofrer com elas ou desfrutá-las é opcional”. De que experiências a criatura estaria falando? Será que existe alguém no mundo capaz de vivenciar a dor de um filho e se manter emocionalmente inviolável? Até que pode ser, mas duvido que quem enunciou esta frase imagine a complexa tarefa que é manter os filhos vivos, saudáveis e felizes.

Com a volta às aulas, aproveitei para tentar fazer minhas descobertas. Com as crianças estudando, eu teria algum tempo e a paciência resignada para conseguir uma resposta que apaziguasse minha alma. Não era possível passar por tudo aquilo sem um esclarecimento minimamente decente. Coloquei a bicicleta de rodas pro ar e comecei o escrutínio criterioso de cada peça. Estava de olho nos detalhes importantes, como o calibre dos pneus e os artefatos pontiagudos. Busquei algum ferro retorcido e fora de lugar, dando seqüência ao meu projeto de desagravo. Verifiquei a ponta do selim, mas não achei nada suspeito. Era arredondado e um pouco largo. E o freio da bicicleta? Talvez a resposta estivesse ali. Apertei-o várias vezes até me certificar de que ele não estava deslocado pra lado algum. Descartei mais esta possibilidade e me lembrei de que o guidão, com a sua ponta de borracha e colado ao freio, não seria capaz de causar um dano tão incisivo. Enfim, toda a pesquisa redundou em nada. Por razões misteriosas, eu estava de volta à sensação de que segredos existenciais, não revelados, andavam pelas cercanias.

Um medo assustador me envolveu quando fui agradecer à Gabi e aos serviços nota dez prestados pelo eletricista. Ela, me olhando como se eu estivesse noutro mundo, entre a sanidade e a loucura, explicou que nem conhecia tal figura. O ineditismo da informação deu vazão à sensação da existência de segredos atrás das portas. Fiquei mais grilada ainda quando soube da origem do nome Alastor: "demônio cruel". Tudo precisava ser visto com desconfiança, afinal, a imaginação é a mãe dos sonhos, mas também dos pesadelos.

Este tema foi um ponto cego em minha vida durante muitos anos. Não foi possível passar pela experiência sem fazer considerações de natureza filosófica, existencialista e religiosa. Afinal, ela fugia dos padrões a que estamos acostumados. Foi um caso plantado, desses que desafiam todas as teorias da interpretação e acabam levantando suspeita contra tudo e contra todos. Seria preciso discutir métodos, ponderar limites e ampliar fronteiras. Será que eu ainda estava disposta? Diante de tudo aquilo, cheguei à conclusão de que não valia a pena. Há uma defasagem entre o conhecimento, o entendimento e o comportamento. Decidi deixar tudo como estava: sem resposta. Até porque, existem na vida certos obstáculos intransponíveis. E este era mais um deles.


"A fé é uma conquista difícil, que exige combates diários para ser mantida." (Paulo Coelho)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ponto Cego (2/3)

No corredor, aguardamos até que a sala de cirurgia estivesse preparada. Carola parecia não se incomodar com o que havia acontecido em suas vias baixas. Eu mal podia entender aquela cena! Puxando assunto com uns e outros, ela se locomovia sem reservas ou dores aparentes, como se estivesse numa reunião entre amigos. Sua única exigência era a de que eu permanecesse a seu lado todo o tempo. E assim foi que entramos no bloco cirúrgico. Gastaram pouco tempo até sedá-la. Eu me encontrava estrategicamente de pé, logo acima de sua cabeça. Ali, era possível acompanhar a movimentação dos médicos e ainda ficar de olho caso a anestesia começasse a acabar.

Após alguns minutos de escrutínio, fui convidada pelo cirurgião a dar uma olhada no local do estrago. A imagem prescindia de palavras. Horrorizada, eu ouvia os comentários dos médicos. Diante da visão surreal, um consternado Dr. Irineu declarou jamais ter visto ocorrência semelhante em seus anos de profissão. Fiquei imaginando o que poderia ter provocado tudo aquilo, enquanto meu relógio andava mais lentamente que o normal. Talvez porque eu estivesse ligada demais no tempo que o médico levou para costurar a ferida.

Terminada a cirurgia, ele me confidenciou que a recuperação seria dolorosa. Que o material introduzido era pontudo e cortante. A peça havia entrado com força bastante para dilacerar e cortar, longitudinalmente, grande parte da região pélvica. Repetiu, incessantemente, que o objetivo seria levar a sério condições máximas de higiene. Banhos permanentes fariam parte dos cuidados, especialmente após o uso do vaso. Antibióticos potentes foram receitados com a finalidade de se evitar um mal maior. Enfatizou o uso concomitante de analgésicos fortíssimos e conclui a sessão com um discurso sobre a inclusão de altas doses de paciência.

Enquanto escutava sua dissertação, dava tratos à bola sobre os efeitos daquele acontecimento na vida da Carola. Quanta estupidez! A infância afinal perdera sua inocência – artigo de luxo num mercado saturado de informações a cada dia mais precoces. Não era isso que eu havia sonhado para a minha filha. Pensava sempre em descobertas feitas a seu tempo. Que ela, como todo mundo, tivesse direito a passeios imaginários, sonhos adolescentes, frufrus e fricotes. Com alguma tristeza, recordei que o nosso mundo – o dos especiais –, um pouco mais cruel que outros, impunha um novo olhar e ações mais objetivas. Acontecimentos normais da vida exigiam explicação prática e objetiva, sem direito a jogos retóricos. Fui obrigada, por vezes, a me adiantar nas explicações sobre sexualidade e maldades alheias, como única forma de ajuda-la a preservar-se. Consternada, segui a estratégia obrigatória do expediente, tendo a certeza de que ela seria a responsável pela ruptura da fantasia e da ilusão. E quem seria capaz de viver sem elas?

Voltando do devaneio momentâneo, fui surpreendida por minha própria ousadia ao superar tabus. Num orgulho que não ocultava desespero e acrescido de alguma frustração, ainda tive a coragem para fazer uma pergunta que não se calava na garganta – minha filha continuaria virgem ou não? Percebi um leve sorriso camuflado no canto da boca do Dr.Irineu. Enrubesci discretamente, consciente da polêmica que aquela pergunta poderia gerar. Encarando meu interlocutor com um olhar acima de qualquer suspeita, fui voltando a uma condição mais próxima da normal depois de saber que, naquela idade, oito anos aproximadamente na época, o hímen é complacente.

Dr. Irineu tinha toda razão quando me mostrou – literalmente – o caminho das pedras a seguir. Tudo foi mesmo muito mais difícil do que eu poderia supor. Meu conselheiro, de forma firme e suave, fez com que eu me recordasse de que Deus não me prometeu dias sem dor, risos sem sofrimento, sol sem chuva. Que eu, apesar de tudo, ainda agradecesse muito a Ele. Havíamos tido sorte de acordo com o médico, que expôs as dificuldades que poderíamos enfrentar caso o intestino e a bexiga tivessem sido perfurados.

O sofrimento a mim imposto fazia uma interface cruel com a sorte de minha filha. Qual seria o propósito daquela lição? Será que no meio de tanta gente neste mundo, Deus foi achar logo a mim para testar virtude e integridade, por meio de desafios pesados e constantes? Eu já andava cansada de ser sua protagonista ideal – a que bailava nos conflitos e acreditava na esperança, indo do tormento à alegria tão rapidamente como se estivesse numa montanha-russa. Neste caso, e o que era pior, Carola se mostrava como a mais vulnerável das vítimas.
(Continua.)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ponto Cego (1/3)

Fomos acordados com um pequeno estouro, sem saber muito bem de onde vinha. Os efeitos foram sentidos exatamente no momento em que eu tentei esquentar, em vão, o leite no microondas. Ele teimava em não funcionar, da mesma forma que o chuveiro, o ferro de passar roupa, o liquidificador, o barbeador e o elevador. Fiquei pensando que só mesmo acontecendo algo assim para valorizarmos a energia mais cara do Brasil.

No rastro do desacerto, fui construindo minha irritação a cada empecilho. Imaginando que o problema talvez estivesse na fiação da casa, comecei a sofrer com os transtornos que esta constatação traria. Surpreendi-me com a tranqüilidade dos vizinhos que, diferentemente de mim, pareciam não se incomodar com o imprevisto. Não escutei nenhum tipo de reclamação ou movimento que indicasse a busca de providências. Avaliei, indignada, minha pouca tolerância para incidentes como aquele e o estrago que provocavam no meu emocional. Tinham o poder de mexer comigo visceralmente, atrapalhando a rotina e me obrigando a arrumar espaço numa agenda normalmente superlotada de obrigações. Era só o que me faltava!

Pedi aos meninos que descessem com suas bicicletas para a garagem do prédio, enquanto providenciava alguém que me prestasse um socorro rápido. Quase nada poderia ser feito naquela casa enquanto não fosse resolvido o problema elétrico.
No meio da correria, lembrei-me de que minha vizinha era craque em descobrir gente pra consertar qualquer coisa: de cano furado a dobradiças arrebentadas. Gabi me deu o telefone e o nome do camarada: seu Alastor.

Ele chegou trazendo uma maleta velha e surrada. Abri a porta da área e convidei-o a entrar. A janela estava escancarada e uma súbita corrente de ar me fez sentir um calafrio. Seu Alastor era do tipo caladão e não olhava a gente nos olhos. Preferia trabalhar quietinho. Mantinha no rosto um certo ar de deboche, talvez desdém. Eu permanecia a seu lado, relatando os últimos acontecimentos e fornecendo detalhes, sempre à sua disposição. Levei a escada, minha caixa de ferramentas e um pano de limpeza. De vez em quando, eu me assustava com o seu olhar de esguelha para cada canto do apartamento. Fiz todo o possível para que ele não notasse a perturbação que isso provocava em mim.

Distraída, mal pude perceber o estado de ansiedade do Guilherme, contando que a Carola tinha se machucado com a bicicleta, lá embaixo. Perguntei de que forma aquilo acontecera, já que a garagem era pequena e nada havia nela que pudesse provocar um acidente. Pedi que fosse buscá-la, acreditando tratar-se de mais um arranhão. Enquanto isso, seu Alastor terminava seu serviço e, com a graça de Deus, todos os eletrodomésticos voltaram a funcionar, restabelecendo a ordem na casa. Quase beijando meu salvador pelo auxílio prestado, tratei de pagar a conta salgada, dando um jeito de logo despachá-lo dali.

Aproveitei meus cinco segundos de satisfação, curtindo como uma maluca o som da enceradeira no banheiro, da torradeira fazendo pular minhas torradas no ponto e do liquidificador chacoalhando leite com banana. Eu só não sabia que o melhor seria digerir rapidamente meu precioso desjejum. Lidar com os problemas da Carola exigia certo controle e muita saúde para aturar seus escândalos costumeiros. Dentro de mim, alguma coisa dizia que lá vinha mais um abacaxi pra descascar. Onde mesmo seria preciso procurar, para que o meu empenho em resgatar a paz naquele dia redundasse em sucesso?

Foi quando entraram os dois, Carola na frente, surpreendentemente tranqüila, e o Gui com uma carinha assustada, parecendo não entender de onde vinha a tal queixa. Dei uma olhada rápida ao redor de minha filha, procurando algum vestígio vermelho, um rasgão na calça de nylon ou outra coisa qualquer que denunciasse o acidente. Minha sorte foi ter-me assentado, para esmiuçar cada parte do seu pequeno corpo. Corri as mãos em seus braços, puxei com cuidado as mechas de seus cabelos, espiei as unhas e não vi nada. Puxei a calça com cuidado e fui surpreendida com um mar de sangue que saia entre suas perninhas. Deixei que a ducha do chuveiro se incumbisse da limpeza. Era preciso descobrir de onde vinha tudo aquilo. Percebendo a água colorida que descia para o piso do box, Carola começou a chorar. Encolheu-se de forma fetal, dificultando a busca minuciosa, contudo necessária.

Foi preciso que uma outra pessoa me ajudasse. Depois de pelo menos cinco anos de fisioterapia intensa para adquirir força física, tornou-se impossível qualquer tentativa de ser mais forte do que ela.

Liguei para a minha mãe, que estava no trabalho, e sugeri que viesse me dar uma mão. A duras penas, conseguimos apenas ter a certeza de que se tratava de uma ferida de grandes proporções. Liguei para o Dr. Odilon, seu pediatra e médico desde a época de bebê, na esperança de conseguir uma consulta relâmpago. Nada feito. Ele estava num congresso fora da cidade. Passei para o plano B, rezando para que o Dr. Nelson, amigo e também pediatra, não estivesse no mesmo congresso.

Num pulo e já de malas prontas, fomos parar em seu consultório, na expectativa de que ele nos dissesse o que havia acontecido. Outra busca infrutífera. Ele não soube nos dizer. Carola mostrou-se irredutível. Tinha pouquíssima vontade de colaborar. De qualquer forma, disse-me o médico que era caso para cirurgia. Procurei minha ginecologista, que estava de férias. Entreguei minha filha aos cuidados do Dr. Nelson, acreditando que ele seria o meu mentor. E foi. Combinou um encontro entre nós e o Dr. Irineu, cirurgião que ele conhecia muito bem. Depois das explicações sobre o caso, pediu que fôssemos nos encontrar com ele, na porta do hospital Mater Dei.

E lá estava o médico, nos esperando como combinado. Cumprimentei-o com solidária simpatia. Sem conhecimento de quem ele era, embora acreditando em sua capacidade profissional, partimos para o consultório, na esperança de uma última tentativa bem sucedida. Outra vez nada... Carola continuava radical: ninguém encostaria nela. Parecia que tudo conspirava contra nós. Com muito cuidado e, falando suficientemente baixo para que somente eu escutasse, o Dr. Irineu soprou em minha direção que iria se preparar para a cirurgia. Seria, afinal, a única forma de termos idéia da extensão do problema e de como fazer para tentar resolvê-lo.

(continua)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Passado presente

Freud dizia que a maior fonte de sofrimento do ser humano é a convivência com o outro.

Venho percebendo que ninguém é capaz de desmentir esta afirmação. Afinal, ainda não conheci pessoas que tenham se isolado social e afetivamente. Mesmo que algumas vezes nos percamos em atitudes pouco ortodoxas – imperfeitos que somos –, acredito ser possível ao homem executar ações de grande generosidade.

O homem continua sendo o fio condutor de uma série de acontecimentos, sensações e possibilidades. Protagonista de sentimentos admiráveis, como a indulgência, a caridade e a boa vontade, podemos seguir acreditando em sua parceria, em sua humilde intenção de fazer a diferença num mundo em que a satisfação dos desejos costuma ser a regra.

Geralmente esquecemo-nos de que, ao longo de nossas vidas, em algum momento, vamos depender ou precisar do outro. Do equilíbrio do outro, de sua sensatez, de sua capacidade de doação ou percepção da realidade. Existem possibilidades praticamente infinitas de materialização de pequenos sonhos.

Num dia de fim de semana, quando a maioria dos pais planeja algum programa para levar os filhos, o shopping estava lotado e dava pra perceber que as crianças custavam a segurar sua ansiedade. A pista estava lá, parecendo caçoar dos que se achavam prontos a encará-la. Escorregadia e levemente fumegante, convidava a todos para um rodopio, como se o equilíbrio fosse algo a ser desconsiderado.

Carola queria muito colocar os patins, mas a limitação fazia com que transitasse entre o desejo e a realização. Não era a sua primeira vez. Outras tentativas já haviam sido empreendidas, embora sem sucesso. Gastei algum tempo apontando uns e outros, mostrando como as coisas aconteciam com as pessoas que arriscavam uma voltinha no gelo. Elas caíam sim, mas se levantavam, consertavam a roupa, passavam as mãos no tecido molhado e voltavam para mais um ensaio. Encorajei-a a assumir o risco, como se eu mesma não estivesse ansiosa com a possibilidade de um pequeno acidente. Lembro-me de ter pedido a Deus que me convencesse de que meu esforço não redundaria numa futura falta de confiança de minha filha em mim.

E aí apareceu aquele rapaz. Percebendo a fragilidade, colocou-se ao seu lado, abaixando e falando carinhosamente com ela. Escutei, vagamente, algumas palavras de incentivo e explicações sobre um medo que ela não precisava ter. Ele estaria junto a ela todo o tempo e, em hipótese alguma, a deixaria cair. Pediu que ela acreditasse em suas palavras. Fiquei surpresa com aquela forma de catequese, de resultados tão imediatos. Como ela se convencera tão rapidamente? Poucas vezes eu havia conseguido sua aquiescência com tamanha prontidão.

A resposta estava ali, na minha frente. Acompanhei seus movimentos e pude perceber que aquele desconhecido tinha a agilidade física e mental que eu costumava esperar da maioria das pessoas. O receio de Carola, embora de forma branda, estava estampado em seu rosto. A paciência e o trabalho diligente do professor fizeram com que aquela máscara fosse se transformando em alegria, perceptível aos olhos mais atentos. Colocando-se por trás dela, sustentava seu pequeno corpo nas pernas levemente dobradas. A segurança vinha do encosto das costas em seu peito protetor. Essa conduta foi suficiente para que ela sentisse a sensação de segurança, liberdade e superação que faziam parte da brincadeira.

Todos os olhares se convergiram para aquela cena. Crianças e jovens que ali brincavam foram se afastando, dando espaço para o par em seu passeio mágico. Com desenvoltura, percorreram mansa e alegremente toda a trajetória da pista. Não percebi vacilo. Nem medo, nem ansiedade. Apenas a satisfação de ambos, como se entre eles houvesse um elo, revelado na harmonia dos corpos, sintonia perfeita, lapidada no respeito e na vontade de provocar alegria.

Por alguns instantes, vi um enxame de anjos esculpidos em cada um dos quatro cantos do ringue. A musica vinha de suas trombetas, enchendo o ar de sons diáfanos. Nos olhos de Carola acenderam-se estrelas. Senti em mim um vento soprando, como se tudo estivesse mudando de direção. E me recordei de que mesmo a mais longa das caminhadas exige uma abordagem passo a passo, por intermédio daqueles que passam por nossa vida. Tenho pra mim que ali se cumpria um plano secreto, resgatado pela arte e pela solidariedade. Percebi que a riqueza do relacionamento é a soma que vem das diferenças: o simplesmente racional não basta.

Difícil traduzir em palavras todas as sensações contidas por trás das imagens. Não há como sair imune depois de tudo o que foi vivido. Foi preciso estar bem acordado para vivenciar a poesia e o encanto, o afeto franco, a lucidez de quem não ignora as dificuldades. Foi necessário enxergar além da eficiência de alguém bem treinado, para só então alcançar as miragens sonhadas. Foi preciso, também, um novo olhar que traduzisse a intervenção poética na beleza dos corpos, na explosão dos sentidos, na harmonia do silêncio dos dois.

Obrigada, amigo. A você, cujo nome eu nem sei. Obrigada pelo gesto modesto, mas relevante. Pela compaixão que te levou à capacidade de escutar e agir com atenção silenciosa e paciente. Pelo otimismo cauteloso e seguro. Você provou que é possível repartir o que o ser humano tem de melhor. E assim, provavelmente, fez com que minha filha sentisse que o outro, na maioria das vezes, não representa medo, mas segurança. Em seu trabalho autoral, recheado de improviso, encontra-se um amigo sério, daqueles que fazem da realidade fonte de aprendizagem, mas que lutam para que a fantasia não desapareça.

As modificações não se manifestaram apenas em Carola. Foi exatamente a atitude de um desconhecido que me fez acordar para um tempo novo, que eu pensava nem existir. O espaço do realizável neste nosso mundo de medidas quase exatas, e que costuma ter as próprias regras – o dia-a-dia. Fez-me parar pra pensar que, muitas vezes, é preciso mais que acordar os sentidos e sacudir a indiferença para se chegar à essência do que existe por trás da ação. Com talento e técnica admiráveis, você deixou que a minha filha passasse da condição de figurante, e, roubando a cena, saísse como protagonista nesta estréia.

Meu amigo, aqui, em Belo Horizonte, seu trabalho deixou reticências de saudade; nunca um ponto final. A memória, ao contrário de mim, que já entrevejo o entardecer, continua viva, como se o tempo não tivesse passado. Ainda posso ouvir os ecos de sua passagem. A Carola continua alegre, amorosa e mergulhada em suas fantasias. Provavelmente, também não se esqueceu de você. Deve apenas andar distraída, colhendo estrelas por aí. Acho que esperando por uma próxima oportunidade, esquecida de que estréias são costumeiramente tensas, mesmo para veteranos como você. Então, até o próximo show!

“ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos “

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Domingo no Parque (2/2)

O gesso ocupava grande parte do membro, chegando até a metade da coxa. A recomendação era clara e incluía uma imobilização terapêutica importantíssima, para a total recuperação da paciente. Qualquer tentativa mais ousada de se colocar o pé no chão poderia pôr tudo a perder. Desta forma, meu cunhado conseguiu nos convencer do perigo que representaria a desobediência às suas ordens. Conclusão: alimentação reforçada, banhos e o uso da "comadre", tudo sempre na cama.

Passei a buscar os deveres na escola todos os dias, a encomendar ossos de boi para a sopa diária – o tutano era fundamental – e a seguir uma rotina xiita de cuidados que me ocupava a maior parte do tempo. As sessões de fisioterapia eram demoradas e penosas. Vinham acompanhadas de reclamações e gritos que chegavam à beira de um colapso nervoso. A passagem do tempo apontava para experiências ainda mais traumáticas.

Ao final de três meses de peleja, era chegada a hora de retirar o gesso. Novo drama em meio ao barulho da serra e o pavor de mais um ferimento. Foi preciso a intervenção de dois enfermeiros para a execução do procedimento, tal o descontrole de minha filha. Depois de tanto tempo imobilizada, veio o medo de colocar o pé novamente no chão. Nem promessa, nem presentes foram capazes de mudar sua conduta. As habilidades motoras de Carola corriam o sério risco de voltar à estaca zero.

Doze anos de luta e intensa fisioterapia estavam a ponto de se tornarem inúteis. Sofrendo muito, dei seqüência a métodos pouco ortodoxos com o firme propósito de não relaxar até conseguir sua cooperação. Apelei para berros e, em desespero, cheguei a lhe dar correiadas, a fim de que me obedecesse. Em estado de total desespero, mantive a angústia disfarçada, a insegurança mascarada e uma simulada alegria que estava longe de sentir. Tinha marido e filho com que me preocupar, e eles eram sempre bem mais frágeis do que eu. Estranho se não fosse assim.

Quatro meses se passaram até o seu completo restabelecimento. Foi exigida muita determinação de todos nós. Também foi preciso viver o insuportável. Houve tempo para o "mea culpa" e espaço para deixar doer o coração. Mais uma vez tivemos de viver fora dos formatos tradicionais, questionando valores, discutindo métodos, investigando limites e ampliando fronteiras. Como desbravadora, sempre enfrentei caminhos desconhecidos, começando do começo, tudo de novo, e de novo...

Eu nunca tive notícia de um acidente como aquele. Depois de muito tempo, observei que o tobogã continuava lá, resistindo no mesmo lugar. A árvore também. Tenho pra mim que ela sequer balançou com o impacto do corpo de Carola em seu tronco centenário. Ignorando aquela visão do apocalipse, deu logo um jeito de garantir seus direitos, fincando suas raízes mais e mais fundo, impedindo deste modo ameaças à sua liberdade e natureza. E lá permanece até hoje, sob as benesses do "usucapião".

Felizmente, agora já dá para promover um encontro com o passado. Fico pensando que aquele foi mais um aperitivo perverso do ciclo do inferno. Uma conspiração tramada para provar a precariedade da vida e a grande fragilidade do ser humano. Engraçado... Depois de algum tempo, parece que se empalidecem todos os nossos dramas. Tudo passa, retornando ao seu lugar de origem. E eu tenho que continuar. Afinal, o mal já está feito, a carga dramática, deixada para trás e o que restou ficou estampado na pele como uma tatuagem.

Mas isso não incomoda a Carola. Nem a leve diferença no esquadro de sua perna configurou-se num drama. Será que eu reagiria da mesma forma se tudo isso tivesse acontecido comigo? Não sei, não. Acho mesmo é que ela é muito valente e que, de alguma forma, está preparada para viver situações complicadas com mais sabedoria. É incrível, mas até isso ela superou. Parabéns, filha!

"Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão" (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 24 de março de 2008

Domingo no Parque (1/2)

Ainda não eram oito horas da manhã e a turminha já estava em polvorosa. Não era pra menos. Chegara, afinal, o tão esperado domingo. Era mesmo um dia especial, e trazia consigo a boa surpresa da inauguração do tobogã do Parque Municipal. Receosos de um lapso da nossa memória, a Carola e o Gui fizeram questão de, rapidamente, nos botar pra fora da cama, imaginando que o mundo pudesse acabar naquele instante.

Numa barganha conveniente, aproveitei a deixa para exigir mais atenção aos estudos e afins. Lembrei-os de que andavam se esquecendo de algumas tarefas corriqueiras, como guardar seus pertences nos devidos lugares, depois de utilizados. Reclamei o fim dos atrevimentos que, ultimamente, andavam na ponta da língua. Assegurei-me de que haviam entendido as regras de obediência e a instauração de uma nova atitude, sem direito a recidivas.

E, já que promessa é dívida, lá fomos nós – eu, meu marido e as crianças – para o programa combinado. Tudo acertado, catei meus sobrinhos, os trigêmeos da minha irmã, e seguimos felizes para a pequena aventura matinal. A pouca diferença de idade entre eles funcionava como um catalisador na interação e na identificação de interesses comuns. Assim, era habitual vê-los sempre juntos na maioria das ocasiões.

A brincadeira rolou por horas a fio, com a meninada pulando de um brinquedo para o outro, na maior folia. Decidimos, então, que já era tempo de “levantar acampamento”. Uma última descida no tobogã, pra fechar com chave de ouro a empreitada, e voltaríamos para casa. Percebi, tardiamente, a intenção das duas meninas quando vi os braços de Juliana, minha afilhada, envolvendo a cintura de Carola. Entusiasmadas, acharam por bem descer assentadas no mesmo tapete, sem saber que o peso dobrado aumentaria sua velocidade. E aí, veio o desastre. Perdido o controle, vi minha filha voando em curva ao final da chegada. Com as pernas esticadas, foi se estatelar a uns três metros de distância, chocando-se com uma árvore que ficava à direita, logo adiante.

Não se ouviu um choro sequer. Só o espanto de ver que o pé não se movia pra lado algum e continuava deitado, inerte na grama. Dois ossos se partiram e saíram pela lateral interna da perna, arrebentando com crueldade a carne e a pele. Tudo saiu do seu formato original. E ninguém fazia nada além de olhar e lamentar, naquela aridez de ação que corrói a alma e empoeira as esperanças.

Triste espera para o atendimento de urgência, no Pronto Socorro. Nossos corações estavam miúdos de dor e apreensão. Horas que não passavam, e uma angústia que não tinha fim. A única certeza era a de que nossa filha estava entregue às mãos habilidosas do ortopedista. Por sorte e destino, ele vinha a ser o seu padrinho de batismo.

Rodopiei à beira do precipício quando soube que a cirurgia, longa e bem sucedida, poderia não ser suficiente para a sua plena recuperação. O tempo à espera dos procedimentos, a ferida aberta e o perigo de uma infecção passaram a ser considerados riscos para uma amputação. Na cumplicidade do silêncio, evoquei todos os meus santos de fé e, sem culpa alguma, fui capaz de pensar que a tecnologia de Exu poderia colocar patuá baiano no chinelo e dar solução ao impensável.

Dias longos e sofridos no hospital. Muito choro, muita dor e a nossa capacidade infinita de acreditar que tudo daria certo. Ao final de quinze dias e uma lista de obrigações inadiáveis, voltamos para casa. Como sempre, eu ficava imaginando qual seria o lado oculto dessa manifestação tão dolorosa. Muito trabalho ainda me aguardava...