quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Côncavo e Convexo

Carola devia estar com uns vinte e três anos. Chegou, certo dia, me confidenciando com um sorriso malicioso o interesse por um colega do curso médio. Era encantada com aquele menino clarinho de olhos azuis, espinhas no rosto, fino e comprido como um caniço. Mancava de uma perna e tinha a mão um pouco torta, resultado de algum tipo de paralisia. Tentei dissuadi-la da idéia de namorar alguém tão comprometido. Ela resistiu indignada, dizendo que só eu enxergava aquelas coisas. Queria que eu notasse como ele era esforçado e que, além do mais, não tinha culpa de ter nascido daquele jeito.

Deixei que o tempo se encarregasse daquilo que eu não conseguia resolver. A coisa não foi muito longe e, quando terminou, dei graças a Deus. Ficou por conta de um amor platônico de vida breve. Até que ela me veio com a história de que o cupido havia flechado seu coração novamente. Fiquei imaginando a próxima vítima e o novo desafio que tinha pela frente. Nessa brincadeira, a coisa muda de figura radicalmente: acabamos arranjando mais um filho para tomar conta.
Tranqüilizei-me quando soube que o pretendente era o Vaguinho. Eu tivera a oportunidade de conhecer seus pais – sabia que se tratava de um rapaz educado, de boa aparência e hábitos semelhantes aos nossos. Eram colegas na escola profissionalizante e se davam muito bem, dentro e fora dela. Carola estava com vinte e seis anos. Quatro anos mais velho que ela, Vaguinho tinha lá suas dificuldades de aprendizagem, muito bem camufladas por uma mobilidade que lhe garantia total independência.
Saber que nossos filhos, portadores de algum grau de dependência, estão convivendo com pessoas que têm os mesmos princípios é fundamental. Isso sinaliza que a família está empenhada em estabelecer regras básicas, determinando limites, atenta ao comportamento e ao limiar de censura do indivíduo. É muito importante o intercâmbio de informações entre os pais ou responsáveis. O perfil de cada um deles deve ser descrito com riqueza de detalhes; só assim estaremos preparados para contornar situações de risco, entender as características de sua personalidade e provável reação diante dos estímulos. No nosso caso, uma das maiores dificuldades da Carola era a sua pouca ou nenhuma capacidade em administrar frustrações.

Eles formavam um casal interessante. Pareciam ser a extensão um do outro. Carola, naquela sua aparência de menina, beleza brejeira e corpo recortado, estava sempre antenada nos últimos acontecimentos. Assim, era o suporte ideal para dar vazão à independência de Vaguinho. Ele, por sua vez, já havia parado de estudar há tempos e precisava de alguém que tomasse a iniciativa de recorrer aos conhecimentos que lhe faltavam. Foi assim que decidiram ir a uma peça teatral, que seria apresentada no Teatro Alterosa.

Mergulhei fundo na psicologia, abrindo espaço para o silêncio reflexivo. Deixei que eles resolvessem como fazer, sem a minha interferência. Queria avaliar a capacidade de ação e o potencial de cada um. Vaguinho assegurou saber locomover-se pela cidade sem perigo de vacilo. Precisava apenas que alguém descobrisse o endereço. Atrapalhava-se na busca de informações e não era acostumado ao manuseio do catálogo de telefone. Sem pestanejar, Carola folheou as páginas até encontrar o que procurava. Ligou para o teatro, anotando o endereço. Explicou onde morava, perguntou sobre os ônibus que teriam que pegar, seu número e em que rua desceriam para chegar até lá. Tudo anotado, dinheiro no bolso e lá foram eles, felizes da vida.

Partiram de mãos dadas para aquele seu novo ensaio. Fiquei preocupada com o desfecho da aventura, mas consegui segurar minha ansiedade. Cada nova experiência nos deixa aflitos e nos sentimos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de nossos filhos. Tampouco deve sobrar espaço para que o medo nos imobilize; afinal, é também nossa tarefa prepará-los para a vida.
Voltaram ao final da tarde, radiantes. Adoraram a peça infantil e, às gargalhadas, contavam os detalhes de cada cena em meio a gestos e caretas. Aquela foi uma viagem sem incidentes, que serviu para deixá-los mais seguros e confiantes em suas habilidades. Já estavam fazendo planos para uma próxima incursão. Na grade de possibilidades, uma lista que começava por um passeio pelo parque das Mangabeiras, passava pelo Shopping 5ª Avenida e terminava numa quermesse patrocinada pela igreja.

O namoro não durou muito tempo. Vaguinho resolveu trocar de namorada como quem troca de roupa. Carola chorou, lamentou a perda e, indignada, discutiu a aparência duvidosa da rival. Consegui persuadi-la dizendo que isso era o que acontecia com todo mundo, e que ela não era diferente de ninguém. Além do mais, já poderia dizer que sabia o que era namorar. Então, que deixasse o Vaguinho pra lá e fosse viver sua vida, feliz como sempre fora. E ela, que arrumava desculpa pra tudo, arrematou enxugando as lágrimas:

- É mesmo, mãe. Bem feito pra ele. Trocou essa gatinha aqui por aquele bagulho. Olha bem pra mim: quem é que tem um cabelo pretinho e brilhante como o meu? E um corpinho enxuto feito o meu? Eu sou muito mais bonitinha que ela. Você quer saber mãe? Pra mim, chega de namoro. Esse negócio dá um trabalho danado!

Respirei aliviada. Eu estava salva, até a próxima vez.

"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem".

5 comentários:

Anônimo disse...

Adoro essas histórias "afetivas" da Carol. Este texto flui muito bem e está delicioso. Parabéns! Continue escrevendo e feliz 2008. Espero ler muitas coisas boas por aqui. Beijos.

Grilinha disse...

Adoro a tua escrita.

Adorei ler esta história e concordo com aquilo que disseste !

Um beijo

Graziela disse...

Eliana Feliz Ano Novo para vc e para sua familia.
Que 2008, que ja esta ai, lhe traga muita saude, paz, amor, paciencia, perseveranca, discernimento e muita, mas muita inspiracao para que vc continue escrevendo. Adoro a forma como vc conta as suas vivencias e as da Carola, tenho aprendido muito com vcs.
E a Carola tem razao... namorar da um trabalhao danano.
Um abraco nosso
Gra

Anônimo disse...

Nossa... namorar dá mesmo muito trabalho. ÔÔÔÔÔÔÔ tia Lili... que saudades de vc!!! Depois que vendemos as posses em BH, voltar tem sido foda. Mas ao pousar aí de novo te aviso, ok? Feliz 2008!!! Esse ano promete tia Lili... inclusive vem te trazendo mais um sobrinho(a) neto(a)!!!! Tá sabendo das novidades??? ESCREVA COM MAIS FREQUENCIA TIA LILI!!!!
Beijos!!!

gudinha disse...

Oi Eliana!
Nossa que saudades, mas já pus minha leitura em dia, você como sempre escrevendo muito bem, inspiradíssima!Pretendo voltar logo, mas está tudo bem. Um excelente ano novo para você e sua família, especialmente para a Carola!
Beijos,
Gi