segunda-feira, 2 de junho de 2008

Passado presente

Freud dizia que a maior fonte de sofrimento do ser humano é a convivência com o outro.

Venho percebendo que ninguém é capaz de desmentir esta afirmação. Afinal, ainda não conheci pessoas que tenham se isolado social e afetivamente. Mesmo que algumas vezes nos percamos em atitudes pouco ortodoxas – imperfeitos que somos –, acredito ser possível ao homem executar ações de grande generosidade.

O homem continua sendo o fio condutor de uma série de acontecimentos, sensações e possibilidades. Protagonista de sentimentos admiráveis, como a indulgência, a caridade e a boa vontade, podemos seguir acreditando em sua parceria, em sua humilde intenção de fazer a diferença num mundo em que a satisfação dos desejos costuma ser a regra.

Geralmente esquecemo-nos de que, ao longo de nossas vidas, em algum momento, vamos depender ou precisar do outro. Do equilíbrio do outro, de sua sensatez, de sua capacidade de doação ou percepção da realidade. Existem possibilidades praticamente infinitas de materialização de pequenos sonhos.

Num dia de fim de semana, quando a maioria dos pais planeja algum programa para levar os filhos, o shopping estava lotado e dava pra perceber que as crianças custavam a segurar sua ansiedade. A pista estava lá, parecendo caçoar dos que se achavam prontos a encará-la. Escorregadia e levemente fumegante, convidava a todos para um rodopio, como se o equilíbrio fosse algo a ser desconsiderado.

Carola queria muito colocar os patins, mas a limitação fazia com que transitasse entre o desejo e a realização. Não era a sua primeira vez. Outras tentativas já haviam sido empreendidas, embora sem sucesso. Gastei algum tempo apontando uns e outros, mostrando como as coisas aconteciam com as pessoas que arriscavam uma voltinha no gelo. Elas caíam sim, mas se levantavam, consertavam a roupa, passavam as mãos no tecido molhado e voltavam para mais um ensaio. Encorajei-a a assumir o risco, como se eu mesma não estivesse ansiosa com a possibilidade de um pequeno acidente. Lembro-me de ter pedido a Deus que me convencesse de que meu esforço não redundaria numa futura falta de confiança de minha filha em mim.

E aí apareceu aquele rapaz. Percebendo a fragilidade, colocou-se ao seu lado, abaixando e falando carinhosamente com ela. Escutei, vagamente, algumas palavras de incentivo e explicações sobre um medo que ela não precisava ter. Ele estaria junto a ela todo o tempo e, em hipótese alguma, a deixaria cair. Pediu que ela acreditasse em suas palavras. Fiquei surpresa com aquela forma de catequese, de resultados tão imediatos. Como ela se convencera tão rapidamente? Poucas vezes eu havia conseguido sua aquiescência com tamanha prontidão.

A resposta estava ali, na minha frente. Acompanhei seus movimentos e pude perceber que aquele desconhecido tinha a agilidade física e mental que eu costumava esperar da maioria das pessoas. O receio de Carola, embora de forma branda, estava estampado em seu rosto. A paciência e o trabalho diligente do professor fizeram com que aquela máscara fosse se transformando em alegria, perceptível aos olhos mais atentos. Colocando-se por trás dela, sustentava seu pequeno corpo nas pernas levemente dobradas. A segurança vinha do encosto das costas em seu peito protetor. Essa conduta foi suficiente para que ela sentisse a sensação de segurança, liberdade e superação que faziam parte da brincadeira.

Todos os olhares se convergiram para aquela cena. Crianças e jovens que ali brincavam foram se afastando, dando espaço para o par em seu passeio mágico. Com desenvoltura, percorreram mansa e alegremente toda a trajetória da pista. Não percebi vacilo. Nem medo, nem ansiedade. Apenas a satisfação de ambos, como se entre eles houvesse um elo, revelado na harmonia dos corpos, sintonia perfeita, lapidada no respeito e na vontade de provocar alegria.

Por alguns instantes, vi um enxame de anjos esculpidos em cada um dos quatro cantos do ringue. A musica vinha de suas trombetas, enchendo o ar de sons diáfanos. Nos olhos de Carola acenderam-se estrelas. Senti em mim um vento soprando, como se tudo estivesse mudando de direção. E me recordei de que mesmo a mais longa das caminhadas exige uma abordagem passo a passo, por intermédio daqueles que passam por nossa vida. Tenho pra mim que ali se cumpria um plano secreto, resgatado pela arte e pela solidariedade. Percebi que a riqueza do relacionamento é a soma que vem das diferenças: o simplesmente racional não basta.

Difícil traduzir em palavras todas as sensações contidas por trás das imagens. Não há como sair imune depois de tudo o que foi vivido. Foi preciso estar bem acordado para vivenciar a poesia e o encanto, o afeto franco, a lucidez de quem não ignora as dificuldades. Foi necessário enxergar além da eficiência de alguém bem treinado, para só então alcançar as miragens sonhadas. Foi preciso, também, um novo olhar que traduzisse a intervenção poética na beleza dos corpos, na explosão dos sentidos, na harmonia do silêncio dos dois.

Obrigada, amigo. A você, cujo nome eu nem sei. Obrigada pelo gesto modesto, mas relevante. Pela compaixão que te levou à capacidade de escutar e agir com atenção silenciosa e paciente. Pelo otimismo cauteloso e seguro. Você provou que é possível repartir o que o ser humano tem de melhor. E assim, provavelmente, fez com que minha filha sentisse que o outro, na maioria das vezes, não representa medo, mas segurança. Em seu trabalho autoral, recheado de improviso, encontra-se um amigo sério, daqueles que fazem da realidade fonte de aprendizagem, mas que lutam para que a fantasia não desapareça.

As modificações não se manifestaram apenas em Carola. Foi exatamente a atitude de um desconhecido que me fez acordar para um tempo novo, que eu pensava nem existir. O espaço do realizável neste nosso mundo de medidas quase exatas, e que costuma ter as próprias regras – o dia-a-dia. Fez-me parar pra pensar que, muitas vezes, é preciso mais que acordar os sentidos e sacudir a indiferença para se chegar à essência do que existe por trás da ação. Com talento e técnica admiráveis, você deixou que a minha filha passasse da condição de figurante, e, roubando a cena, saísse como protagonista nesta estréia.

Meu amigo, aqui, em Belo Horizonte, seu trabalho deixou reticências de saudade; nunca um ponto final. A memória, ao contrário de mim, que já entrevejo o entardecer, continua viva, como se o tempo não tivesse passado. Ainda posso ouvir os ecos de sua passagem. A Carola continua alegre, amorosa e mergulhada em suas fantasias. Provavelmente, também não se esqueceu de você. Deve apenas andar distraída, colhendo estrelas por aí. Acho que esperando por uma próxima oportunidade, esquecida de que estréias são costumeiramente tensas, mesmo para veteranos como você. Então, até o próximo show!

“ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos “

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi tia Lili. As saudades por aqui são grandes!!! Luiza deve nascer no dia do meu aniversário. Tomara!! Ela já tá com 46 cm e 2 kg!!! Mal posso esperar!!! Assim que ela resolver aparecer por esse mundo a gente te avisa pra vc poder conhecer a mais nova sobrinha-neta... hehehehe
BEIJOS em todos!
Dada