sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O sal doce da vida

Seria bom demais se a gente pudesse ter sempre ao nosso lado alguém que dissesse como criar bem os filhos. Como agir nas desventuras, nos momentos de dor, nos processos que envolvem doenças e grandes aflições. Também seria legal se nos ensinassem fórmulas mágicas para sairmos do fundo do poço, conservando altruísmo e coragem suficientes para encarar novos desafios, depois de mais uma rebordosa da vida.

Precisei de algum tempo na estrada até entender que filho vem mesmo sem manual de instrução, sobretudo os especiais, como a Carola. Entender que eu precisaria de uma força extra e alguma habilidade pra dissecar feridas profundas como se elas fossem meros arranhões.

Não, nem Freud estaria em condições de explicar o sentimento de impotência gerado pelas peças que a vida me pregava. Meu caso agora exigia a intervenção de alguém mais bem preparado, muitas vezes mais lúcido e extremamente pródigo comigo. Alguém que me respondesse como é que se faz pra não morrer de tanto chorar, pra não perder definitivamente a paciência e fugir pra qualquer lugar.

Volta e meia éramos surpreendidos por mais um episódio de conseqüências penosas, quase surreais. Era incrível como as coisas aconteciam em série com a nossa filha. Seu organismo me parecia frágil. Eu vivia atenta e me desdobrava em cuidados, na expectativa de que se fortalecesse. Achava que assim seria possível driblar algumas doenças oportunistas e uma trégua fosse inaugurada, pondo fim aos episódios sorrateiros que nos pegavam de surpresa. Com a confiança possível, tocava o meu projeto, ainda que fosse possível ouvir os ecos de um desassossego permanente.

Do nada, era uma unha que amanhecia infeccionada e precisava ser retirada; uma conta colocada propositalmente por ela dentro do ouvido sem que eu percebesse, iniciando um processo inflamatório de grande repercussão. Um ralado na coxa que, repentinamente, virava uma ferida aberta a purgar sem parar. Eu sabia que fatalmente tudo seria tratado da mesma maneira: anestesia geral sem chance de qualquer outro tipo de intervenção. Os anos de tratamentos intensivos deixaram sua seqüela manifestada sob a forma de um pavor crônico por roupas brancas, macas e o cheiro hospitalar.

Depois de muitos pedidos e a promessa de um acompanhamento lado a lado, consegui do seu pediatra a indulgência de mantê-la sob meus cuidados, em casa. Fui alertada de que tratar gastrenterite fora do hospital era, no mínimo, o caminho mais rápido para um desenlace de péssimas conseqüências. Mas resolvi mais uma vez arriscar, acreditando que o meu amor de mãe e todo o meu empenho seriam a garantia de mais tranqüilidade para minha filha. Assumi a responsabilidade do desfecho, qualquer que fosse ele.

Um cheiro podre tomava conta do ambiente. Fraldas pesadas eram trocadas em curtos espaços de tempo. O azedo dos vômitos me obrigava a abrir as janelas de todos os quartos da casa para que o cheiro se dissipasse mais rapidamente. Carola se mantinha inerte na minha cama e, já sem forças, quase não chorava. Eu a mantinha hidratada com pequenos goles de “Pedyalite”, tomados vagarosamente com uma colherzinha de chá. Do seu lado permaneci, dias e noites, cumprindo aquele ritual já conhecido.

O quadro se manteve inalterado até que, depois do terceiro dia, me veio uma leve impressão de que ela começava a dar sinais de cansaço. Considerei o risco e assumi com a força que me restava os encargos da minha opção. Tinha a certeza de que tudo havia sido feito e que eu tinha dado o melhor de mim. Seus olhos morteiros deixavam transparecer uma névoa branca e embaçada. Lembrei-me com bastante clareza de quando ainda eram alegres e vivos.

Chamei minha mãe, minha irmã e, numa ciranda solidária, nos demos as mãos. Pedimos orientação e força para que a vontade de Deus fosse feita. Nos entregamos, coração pequeno e alma aflita, para que Ele nos desse a resignação necessária por mais essa vez. Assim, e em silêncio, ficamos aguardando o desfecho daquele episódio. Rezando e entregando nosso bem maior, deixamos que a nossa força cumprisse o papel de fortalecê-la naquele momento.

Foi quando sentimos um ligeiro tremor naquele pequeno corpo. Abrimos os olhos e nos deparamos com uma criança que saia de seu torpor, sorrindo mansamente como se a vida a tomasse nos braços novamente. Choramos muito e, quase não acreditando, nos pusemos a rezar, agora em agradecimento pela nova oportunidade. Daí para frente, fomos surpreendidos por uma melhora crescente, até o seu total restabelecimento.

Perdendo-me mais uma vez num emaranhado de cogitações filosóficas, cheguei à conclusão de que a vida é uma eterna corrida de obstáculos. Não há garantias de que as coisas estarão sempre bem. Em contrapartida, temos que continuar sem nos ater aos percalços, aproveitando os bons momentos como se eles fossem únicos.

É esperar que o bom senso e a vontade de viver vençam a perplexidade dos acontecimentos, reduzindo nosso sofrimento inútil. Até porque, afinal, entra dia e sai dia, nossa existência não deixa de ser uma seqüência de problemas vencidos. E lá vamos nós, pelejando e lutando nesse cabo-de-guerra, às vezes ganhando, às vezes perdendo. Mas sempre tentando sorrir.


“Evitemos o desespero em suaves cotas, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o do simples ato de respirar.”

Um comentário:

Mae disse...

adorei conhecer seu blog. meu filho tem 6 meses e nasceu com esquizencefalia...é uma doença que se assemelha a uma PC. voltarei outras vezes.