quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Teje presa!

Era um dia da semana como outro qualquer. Eu pressentia alguma dificuldade pela frente, mas ir àquele evento era mais que obrigatório. Era trabalho sério que envolvia uma estratégia funcional da empresa onde meu marido trabalhava. Resultados positivos da negociação sinalizariam o sucesso da empreitada. Para quem vivia de alcançar metas pré-estabelecidas, fechar a cota de objetivo de vendas significava arrojo, desempenho e dinheiro extra.

Só pra complicar, aquele também era o dia em que se comemoraria mais um ano de sacerdócio do padre Landinho. Também era óbvio que a Carola fazia questão de ir até a igreja para a celebração da missa em ação de graças. Como não conseguimos alguém que lhe fizesse companhia até o nosso retorno, consideramos inevitável dizer a ela que, dessa vez, não seria possível prestar sua homenagem ao reverendo. Tentei convencê-la de que bastava rezar em casa para que suas orações fossem ouvidas e o padre fosse aquinhoado com mais uma benção. Chamei sua atenção para a programação interessante da TV, de como era legal jogar paciência e dos milhões de alternativas oferecidas pela Internet. Nada surtiu efeito.

Desisti de buscar novas alternativas depois de tantas ofertas em vão. Mais uma vez ela insistia naquela história das chaves da casa. Por que não podia ter uma se até o Guilherme, que era mais novo que ela, já se utilizava da sua há tempos? Voltei ao velho e desgastado discurso: sua irresponsabilidade nos cuidados com o molho de chaves. Tinha medo que alguém pudesse perceber sua vulnerabilidade, obrigando-a a abrir o apartamento. Isso sem falar em todos os outros problemas que povoavam nossas cabeças. Ela se rebelou, esbravejou e, à revelia dos meus apelos, chorou bem alto pra que todos os vizinhos a ouvissem. Essa era sua fórmula mágica de chamar a atenção de todo mundo. Insistia no respeito aos seus direitos e, me ameaçando, jurou se vingar.

Depois de muitos anos de luta interna, tabefes e castigos sem sucesso, concluí que em alguns momentos, o melhor era não discutir. Aplicaria a ordem sem explicar demais, até porque, não adiantava. Ela não cedia nunca. Aprendi que, se diminuísse o ritmo de minhas ponderações, evitaria respostas impertinentes. Então, apelei para os meus santos de fé e pedi a única coisa possível: muita paciência! Resumia-se nela a chance de ficar mais calma e em paz comigo mesma.

Foi assim que resolvi separar minha roupa para o evento, tomando o cuidado – fundamental – de trancar a porta do quarto. Liguei a televisão mais alto que o recomendável pra não ter que escutar o drama que acontecia do lado de fora. Quase não escutei as batidas firmes na porta. Abri. Lá estava ela com ar de desafio e malícia no canto da boca. Mãos na cintura, balançava os quadris numa forma clássica de intimidação. Convidava-me gentilmente a atender ao telefone e falar com um sujeito que eu não conhecia.

Confirmei o nome, endereço, bairro, CEP, estado civil, identidade e CPF. O indivíduo falava com voz de gângster e se dizia responsável pela Divisão de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente. Suas perguntas tinham o objetivo velado de me constranger e me embaraçar. Respondi a todas elas com a tranqüilidade possível, impressionada com o acréscimo de fatos que não haviam acontecido.

Carola me fitava sorrindo, com ar de vitória. Devolvi e sustentei seu olhar, decidindo por colocar ponto final àquela lambança. Perguntei ao tal Dr. Eponino se ela havia lhe informado sua idade. Ele disse que não, mas que estava francamente comovido com todo aquele relato surpreendente. Intrigada com a observação, passei rapidamente à certeza das intenções de Carola. Precisava reverter o quadro a meu favor, uma vez que estava certa da decisão que havia tomado.

Rapidamente, passei de suspeita à vítima quando resolvi questioná-lo se, no papel de pai de uma menina com necessidades especiais, teria a coragem de confiar-lhe as chaves de sua casa. Negou, questionou, especulou bastante até que, se desculpando, pediu que eu passasse o telefone para a querelante.

Obedeci prontamente e, olhando bem dentro dos seus olhos, devolvi o conhecido balanço dos quadris. Passei o telefone com falsa gentileza. Ela gesticulava nervosa, tentando explicar alguma coisa para ele. Enquanto isso, Dr. Eponino falava sem respirar, emendando um discurso no outro, sem lhe dar a chance de sequer abrir a boca. Até que ele apelou, desligando o telefone sem mais explicações. Quebrou-se o encanto. O potencial para o conflito se instalara e, então, começou tudo de novo.

Irritada, finalizei aquela conversa fiada, lembrando-a de que lá em casa quem mandava era eu. E que ela não perdesse tempo em quedas de braço inúteis. Eu era mais forte e provavelmente ganharia a parada. Exausta, fiquei pensando que, se baseássemos nosso amor no comportamento das crianças, seria muito difícil amá-las.

Na maioria das vezes, sem saber como lidar com as situações, somos obrigados a inventar novos recursos. Precisamos da nossa infalível sensibilidade para enxergar além das diferenças do outro e encontrar a maneira menos penosa de trilharmos juntos o caminho. Quase sempre, essa é uma receita que funciona bem e vale para todas as mães, em algum momento de suas vidas. Tem sido valiosa para mim e costuma não desandar.


“Só quem está no front sabe enfrentar a guerra de todos os dias.”

Um comentário:

Grilinha disse...

delicioso ler-te a aprender contigo. Um beijo, grande mamã.