segunda-feira, 17 de março de 2008

O lado oculto

Descobri que sou uma pessoa de sorte. Alguns podem achar que ela se materialize sob a forma de dinheiro, ganho num jogo de loteria ou herança. Outros, porque conseguiram "aquele" emprego tão desejado – a única maneira de cristalizar seus sonhos pelo viés do trabalho. Estão por aí os que agradecem todos os dias pelo simples fato de estarem vivos, aceitando com prazer o desafio da luta rotineira: são especiais. De minha parte e ao longo dessa jornada, chego à conclusão de que Deus sempre esteve comigo. Sua presença constante reforça minha coragem, indicando sempre um caminho seguro em meio ao denso nevoeiro. Esta é, a meu ver, a maior sorte que o ser humano pode ter.
.

Por Sua obra e graça, Carola ainda não havia despertado para o sexo. Idade ela já tinha de sobra para isso. Contudo, eu jamais percebera qualquer tipo de manifestação que sinalizasse perigo iminente. Certa tranqüilidade ainda tomava conta de mim. Foi quando uma grande amiga cogitou sobre a possibilidade de uma histerectomia parcial ou uma ligadura de trompas.

.

A ação, de acordo com o seu raciocínio, poderia nos poupar futuros dissabores, de conseqüências desastrosas. De fato, eu não estava preparada para aquele acontecimento. Pra falar a verdade, ser avó passava bem longe do que eu poderia considerar um desejo. Acho que, por isso, postergava a decisão que fatalmente teria que tomar um dia.

.

De qualquer maneira, estranhei a forma radical e simplista de solucionar um problema de tamanha magnitude. Carola estava longe de ser apenas uma peça decorativa, um robô que respondesse às minhas ordens ao simples toque de um botão. Pra piorar, eu entendia tudo aquilo como uma invasão desrespeitosa e arbitrária da sua intimidade.

.

Fiquei incomodada com a abordagem, que me pegara de surpresa, e resolvi jogar pesado com a minha consciência. Mais uma vez, eu me encontrava na linha de frente de uma guerra pessoal. Havia me esquecido de que determinadas intercorrências fazem parte de um processo natural a que todos os pais de crianças especiais se submetem. E que esse tipo de tormento me acompanharia até o fim dos meus dias.

.

Saímos, Carola e eu, do ginecologista, com a receita do anticoncepcional nas mãos. Comprimidos diários, ingeridos sem interrupção, funcionariam como preventivo de uma gravidez indesejada e interromperiam um fluxo menstrual generoso. Seria o fim das roupas manchadas, dos lençóis matizados, da higiene mal-feita, das cólicas freqüentes e das discussões recorrentes. De quebra, as pílulas mágicas me abençoariam com a graça da certeza.

.

Não sei dizer quantas cartelas já foram utilizadas ao longo de todo esse tempo. Tenho apenas a certeza de que, com a prática deste procedimento, ela passou a menstruar uma ou duas vezes por ano. Não adquiriu sobrepeso ou efeitos colaterais. Além disso, conseguimos aliviar a pressão psicológica mensal que me tirava do sério. O recurso permitiu, também, a possibilidade do lazer e da natação a qualquer hora. Vira e mexe, lá vinha a choradeira infernal – desgaste desnecessário, provocado por um entendimento que ela não alcançava.

.

Carola continua firme no projeto de ter um filho pra chamar de seu. Eu mantenho a velha cantilena, dissertando da forma mais explicativa possível sobre a sua falta de preparo para empreitada de tamanha monta. Correndo por fora, apareço dissertando sobre a minha pouquíssima vontade de me tornar mãe do meu neto.

.

Outro dia, conversando com um amigo por quem tenho a maior admiração e respeito, enfatizei a necessidade de uma urgente decisão em relação ao episódio. Em sua simplicidade e sabedoria, que só os espíritas Kardecistas possuem, deixou-me um questionamento que, de acordo com suas palavras, seria apenas para efeito de reflexão. Me encolhi sem querer, esperando por uma observação que me levasse ao encontro de algum prejuízo moral ou ético. Ele, então, disparou.

.

- Tudo bem, Eliana. Sei que você deve ter passado noites e noites acordada, procurando a melhor forma de resolver este impasse. A escolha é sua e ninguém pode discuti-la. Especialmente em se tratando de filhos portadores de necessidades especiais como a Carola, acho que a lei lhe outorga o direito supremo de tomar as decisões que achar convenientes. Mas você já parou pra pensar que esse desejo tão grande por um filho pode estar sinalizando um caminho mais curto para a libertação e redenção da Carola? É somente dela que estou falando agora!

.

Fiquei ligeiramente zonza, mas consegui reorganizar meu raciocínio. Decidi refutar humildemente as interferências, lembrando-me de que pensamentos medrosos sugam uma grande quantidade de energia e drenam a capacidade de enxergar a situação da forma como ela se apresenta. Afinal, nada é definitivo no caso de anticoncepcionais: haveria sempre a possibilidade de um retrocesso.

.

Determinei que teria que fazer as pazes com a imperfeição e que, dando por feita aquela escolha, encerrava mais um ciclo desgastante dos muitos que ainda me aguardavam. Deliberei, como ser imperfeito que sou, que tenho toda a chance e o direito de repetir os mesmos erros infinitas vezes, sem me culpar por algum fracasso. Lembrei-me, finalmente, de que errar é humano; que, para minha sorte, Deus permitirá que esses mesmos erros sirvam de lição para outros pecadores, tão bem intencionados como eu. Em Sua infinita bondade, tenho a convicção, me concederá o perdão.

.


"Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor" (Samuel Beckett)

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi!Meu nome é Vânia!adorei teu blog,tenho um filho de 16 anos portador de paralisia cerebral,meus dias não são fáceis,mas tenho mt fé e certeza que o lado oculto me acompanha e me dá a mão para levantar das quedas.Sou feliz com meu filho e agradeço todos os dias por ele ser meu! Um abraço!