quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ponto Cego (2/3)

No corredor, aguardamos até que a sala de cirurgia estivesse preparada. Carola parecia não se incomodar com o que havia acontecido em suas vias baixas. Eu mal podia entender aquela cena! Puxando assunto com uns e outros, ela se locomovia sem reservas ou dores aparentes, como se estivesse numa reunião entre amigos. Sua única exigência era a de que eu permanecesse a seu lado todo o tempo. E assim foi que entramos no bloco cirúrgico. Gastaram pouco tempo até sedá-la. Eu me encontrava estrategicamente de pé, logo acima de sua cabeça. Ali, era possível acompanhar a movimentação dos médicos e ainda ficar de olho caso a anestesia começasse a acabar.

Após alguns minutos de escrutínio, fui convidada pelo cirurgião a dar uma olhada no local do estrago. A imagem prescindia de palavras. Horrorizada, eu ouvia os comentários dos médicos. Diante da visão surreal, um consternado Dr. Irineu declarou jamais ter visto ocorrência semelhante em seus anos de profissão. Fiquei imaginando o que poderia ter provocado tudo aquilo, enquanto meu relógio andava mais lentamente que o normal. Talvez porque eu estivesse ligada demais no tempo que o médico levou para costurar a ferida.

Terminada a cirurgia, ele me confidenciou que a recuperação seria dolorosa. Que o material introduzido era pontudo e cortante. A peça havia entrado com força bastante para dilacerar e cortar, longitudinalmente, grande parte da região pélvica. Repetiu, incessantemente, que o objetivo seria levar a sério condições máximas de higiene. Banhos permanentes fariam parte dos cuidados, especialmente após o uso do vaso. Antibióticos potentes foram receitados com a finalidade de se evitar um mal maior. Enfatizou o uso concomitante de analgésicos fortíssimos e conclui a sessão com um discurso sobre a inclusão de altas doses de paciência.

Enquanto escutava sua dissertação, dava tratos à bola sobre os efeitos daquele acontecimento na vida da Carola. Quanta estupidez! A infância afinal perdera sua inocência – artigo de luxo num mercado saturado de informações a cada dia mais precoces. Não era isso que eu havia sonhado para a minha filha. Pensava sempre em descobertas feitas a seu tempo. Que ela, como todo mundo, tivesse direito a passeios imaginários, sonhos adolescentes, frufrus e fricotes. Com alguma tristeza, recordei que o nosso mundo – o dos especiais –, um pouco mais cruel que outros, impunha um novo olhar e ações mais objetivas. Acontecimentos normais da vida exigiam explicação prática e objetiva, sem direito a jogos retóricos. Fui obrigada, por vezes, a me adiantar nas explicações sobre sexualidade e maldades alheias, como única forma de ajuda-la a preservar-se. Consternada, segui a estratégia obrigatória do expediente, tendo a certeza de que ela seria a responsável pela ruptura da fantasia e da ilusão. E quem seria capaz de viver sem elas?

Voltando do devaneio momentâneo, fui surpreendida por minha própria ousadia ao superar tabus. Num orgulho que não ocultava desespero e acrescido de alguma frustração, ainda tive a coragem para fazer uma pergunta que não se calava na garganta – minha filha continuaria virgem ou não? Percebi um leve sorriso camuflado no canto da boca do Dr.Irineu. Enrubesci discretamente, consciente da polêmica que aquela pergunta poderia gerar. Encarando meu interlocutor com um olhar acima de qualquer suspeita, fui voltando a uma condição mais próxima da normal depois de saber que, naquela idade, oito anos aproximadamente na época, o hímen é complacente.

Dr. Irineu tinha toda razão quando me mostrou – literalmente – o caminho das pedras a seguir. Tudo foi mesmo muito mais difícil do que eu poderia supor. Meu conselheiro, de forma firme e suave, fez com que eu me recordasse de que Deus não me prometeu dias sem dor, risos sem sofrimento, sol sem chuva. Que eu, apesar de tudo, ainda agradecesse muito a Ele. Havíamos tido sorte de acordo com o médico, que expôs as dificuldades que poderíamos enfrentar caso o intestino e a bexiga tivessem sido perfurados.

O sofrimento a mim imposto fazia uma interface cruel com a sorte de minha filha. Qual seria o propósito daquela lição? Será que no meio de tanta gente neste mundo, Deus foi achar logo a mim para testar virtude e integridade, por meio de desafios pesados e constantes? Eu já andava cansada de ser sua protagonista ideal – a que bailava nos conflitos e acreditava na esperança, indo do tormento à alegria tão rapidamente como se estivesse numa montanha-russa. Neste caso, e o que era pior, Carola se mostrava como a mais vulnerável das vítimas.
(Continua.)

Um comentário:

Graziela disse...

Oi Eliana saudades!
Sei que faz tempo que nao comento, mas sempre passo por aqui para ler seus textos. Vc escreve maravilhosamente bem, acho que ja te disse isso ne?
E mais, vc e' uma mulher muito forte, guerreira e uma maezona sem adjetivos para ti, pois eu, tenho certeza que ja teria desabado muitas vezes, acredito que nao teria a forca que vc tem, sou fraca.
Forca ai amiga e quando puder mande noticias de vcs.
Um abraco nosso
Gra e Nicolas