segunda-feira, 24 de março de 2008

Domingo no Parque (1/2)

Ainda não eram oito horas da manhã e a turminha já estava em polvorosa. Não era pra menos. Chegara, afinal, o tão esperado domingo. Era mesmo um dia especial, e trazia consigo a boa surpresa da inauguração do tobogã do Parque Municipal. Receosos de um lapso da nossa memória, a Carola e o Gui fizeram questão de, rapidamente, nos botar pra fora da cama, imaginando que o mundo pudesse acabar naquele instante.

Numa barganha conveniente, aproveitei a deixa para exigir mais atenção aos estudos e afins. Lembrei-os de que andavam se esquecendo de algumas tarefas corriqueiras, como guardar seus pertences nos devidos lugares, depois de utilizados. Reclamei o fim dos atrevimentos que, ultimamente, andavam na ponta da língua. Assegurei-me de que haviam entendido as regras de obediência e a instauração de uma nova atitude, sem direito a recidivas.

E, já que promessa é dívida, lá fomos nós – eu, meu marido e as crianças – para o programa combinado. Tudo acertado, catei meus sobrinhos, os trigêmeos da minha irmã, e seguimos felizes para a pequena aventura matinal. A pouca diferença de idade entre eles funcionava como um catalisador na interação e na identificação de interesses comuns. Assim, era habitual vê-los sempre juntos na maioria das ocasiões.

A brincadeira rolou por horas a fio, com a meninada pulando de um brinquedo para o outro, na maior folia. Decidimos, então, que já era tempo de “levantar acampamento”. Uma última descida no tobogã, pra fechar com chave de ouro a empreitada, e voltaríamos para casa. Percebi, tardiamente, a intenção das duas meninas quando vi os braços de Juliana, minha afilhada, envolvendo a cintura de Carola. Entusiasmadas, acharam por bem descer assentadas no mesmo tapete, sem saber que o peso dobrado aumentaria sua velocidade. E aí, veio o desastre. Perdido o controle, vi minha filha voando em curva ao final da chegada. Com as pernas esticadas, foi se estatelar a uns três metros de distância, chocando-se com uma árvore que ficava à direita, logo adiante.

Não se ouviu um choro sequer. Só o espanto de ver que o pé não se movia pra lado algum e continuava deitado, inerte na grama. Dois ossos se partiram e saíram pela lateral interna da perna, arrebentando com crueldade a carne e a pele. Tudo saiu do seu formato original. E ninguém fazia nada além de olhar e lamentar, naquela aridez de ação que corrói a alma e empoeira as esperanças.

Triste espera para o atendimento de urgência, no Pronto Socorro. Nossos corações estavam miúdos de dor e apreensão. Horas que não passavam, e uma angústia que não tinha fim. A única certeza era a de que nossa filha estava entregue às mãos habilidosas do ortopedista. Por sorte e destino, ele vinha a ser o seu padrinho de batismo.

Rodopiei à beira do precipício quando soube que a cirurgia, longa e bem sucedida, poderia não ser suficiente para a sua plena recuperação. O tempo à espera dos procedimentos, a ferida aberta e o perigo de uma infecção passaram a ser considerados riscos para uma amputação. Na cumplicidade do silêncio, evoquei todos os meus santos de fé e, sem culpa alguma, fui capaz de pensar que a tecnologia de Exu poderia colocar patuá baiano no chinelo e dar solução ao impensável.

Dias longos e sofridos no hospital. Muito choro, muita dor e a nossa capacidade infinita de acreditar que tudo daria certo. Ao final de quinze dias e uma lista de obrigações inadiáveis, voltamos para casa. Como sempre, eu ficava imaginando qual seria o lado oculto dessa manifestação tão dolorosa. Muito trabalho ainda me aguardava...

segunda-feira, 17 de março de 2008

O lado oculto

Descobri que sou uma pessoa de sorte. Alguns podem achar que ela se materialize sob a forma de dinheiro, ganho num jogo de loteria ou herança. Outros, porque conseguiram "aquele" emprego tão desejado – a única maneira de cristalizar seus sonhos pelo viés do trabalho. Estão por aí os que agradecem todos os dias pelo simples fato de estarem vivos, aceitando com prazer o desafio da luta rotineira: são especiais. De minha parte e ao longo dessa jornada, chego à conclusão de que Deus sempre esteve comigo. Sua presença constante reforça minha coragem, indicando sempre um caminho seguro em meio ao denso nevoeiro. Esta é, a meu ver, a maior sorte que o ser humano pode ter.
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Por Sua obra e graça, Carola ainda não havia despertado para o sexo. Idade ela já tinha de sobra para isso. Contudo, eu jamais percebera qualquer tipo de manifestação que sinalizasse perigo iminente. Certa tranqüilidade ainda tomava conta de mim. Foi quando uma grande amiga cogitou sobre a possibilidade de uma histerectomia parcial ou uma ligadura de trompas.

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A ação, de acordo com o seu raciocínio, poderia nos poupar futuros dissabores, de conseqüências desastrosas. De fato, eu não estava preparada para aquele acontecimento. Pra falar a verdade, ser avó passava bem longe do que eu poderia considerar um desejo. Acho que, por isso, postergava a decisão que fatalmente teria que tomar um dia.

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De qualquer maneira, estranhei a forma radical e simplista de solucionar um problema de tamanha magnitude. Carola estava longe de ser apenas uma peça decorativa, um robô que respondesse às minhas ordens ao simples toque de um botão. Pra piorar, eu entendia tudo aquilo como uma invasão desrespeitosa e arbitrária da sua intimidade.

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Fiquei incomodada com a abordagem, que me pegara de surpresa, e resolvi jogar pesado com a minha consciência. Mais uma vez, eu me encontrava na linha de frente de uma guerra pessoal. Havia me esquecido de que determinadas intercorrências fazem parte de um processo natural a que todos os pais de crianças especiais se submetem. E que esse tipo de tormento me acompanharia até o fim dos meus dias.

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Saímos, Carola e eu, do ginecologista, com a receita do anticoncepcional nas mãos. Comprimidos diários, ingeridos sem interrupção, funcionariam como preventivo de uma gravidez indesejada e interromperiam um fluxo menstrual generoso. Seria o fim das roupas manchadas, dos lençóis matizados, da higiene mal-feita, das cólicas freqüentes e das discussões recorrentes. De quebra, as pílulas mágicas me abençoariam com a graça da certeza.

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Não sei dizer quantas cartelas já foram utilizadas ao longo de todo esse tempo. Tenho apenas a certeza de que, com a prática deste procedimento, ela passou a menstruar uma ou duas vezes por ano. Não adquiriu sobrepeso ou efeitos colaterais. Além disso, conseguimos aliviar a pressão psicológica mensal que me tirava do sério. O recurso permitiu, também, a possibilidade do lazer e da natação a qualquer hora. Vira e mexe, lá vinha a choradeira infernal – desgaste desnecessário, provocado por um entendimento que ela não alcançava.

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Carola continua firme no projeto de ter um filho pra chamar de seu. Eu mantenho a velha cantilena, dissertando da forma mais explicativa possível sobre a sua falta de preparo para empreitada de tamanha monta. Correndo por fora, apareço dissertando sobre a minha pouquíssima vontade de me tornar mãe do meu neto.

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Outro dia, conversando com um amigo por quem tenho a maior admiração e respeito, enfatizei a necessidade de uma urgente decisão em relação ao episódio. Em sua simplicidade e sabedoria, que só os espíritas Kardecistas possuem, deixou-me um questionamento que, de acordo com suas palavras, seria apenas para efeito de reflexão. Me encolhi sem querer, esperando por uma observação que me levasse ao encontro de algum prejuízo moral ou ético. Ele, então, disparou.

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- Tudo bem, Eliana. Sei que você deve ter passado noites e noites acordada, procurando a melhor forma de resolver este impasse. A escolha é sua e ninguém pode discuti-la. Especialmente em se tratando de filhos portadores de necessidades especiais como a Carola, acho que a lei lhe outorga o direito supremo de tomar as decisões que achar convenientes. Mas você já parou pra pensar que esse desejo tão grande por um filho pode estar sinalizando um caminho mais curto para a libertação e redenção da Carola? É somente dela que estou falando agora!

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Fiquei ligeiramente zonza, mas consegui reorganizar meu raciocínio. Decidi refutar humildemente as interferências, lembrando-me de que pensamentos medrosos sugam uma grande quantidade de energia e drenam a capacidade de enxergar a situação da forma como ela se apresenta. Afinal, nada é definitivo no caso de anticoncepcionais: haveria sempre a possibilidade de um retrocesso.

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Determinei que teria que fazer as pazes com a imperfeição e que, dando por feita aquela escolha, encerrava mais um ciclo desgastante dos muitos que ainda me aguardavam. Deliberei, como ser imperfeito que sou, que tenho toda a chance e o direito de repetir os mesmos erros infinitas vezes, sem me culpar por algum fracasso. Lembrei-me, finalmente, de que errar é humano; que, para minha sorte, Deus permitirá que esses mesmos erros sirvam de lição para outros pecadores, tão bem intencionados como eu. Em Sua infinita bondade, tenho a convicção, me concederá o perdão.

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"Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor" (Samuel Beckett)

segunda-feira, 10 de março de 2008

Reinventando a Natureza

No dia 18 de setembro de 1976, recebi a tão esperada encomenda. Em meio à confusão do embrulho, havia um envelope, acompanhado de um documento em que se lia: "Este projeto demandará mais tempo que o normal para ser desenvolvido. Deverá ser exaustivamente calculado e pressupõe detalhamento milimétrico para seu bom funcionamento e valorização do conjunto da obra. O material é nobre, embora reclame orientação especializada e assessoria permanente". Achei curioso ter chegado sem a indicação do prazo de validade, num esboço que, à primeira vista, pareceu-me incompleto.
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Um mês após a entrega do material, foi iniciado o "Programa Reconstrução" – operação que visava à implantação de uma nova consciência. Seria necessária a criação de um Código de Posturas, caracterizado pela interdisciplinaridade e baseado em cinco eixos fundamentais: obras de melhoria estrutural, recursos especializados, revitalização das engrenagens defeituosas, valorização da diversidade e inclusão social.
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A previsão era de que os serviços fossem concluídos em módulos, levando-se em conta a instabilidade do tempo, a disposição da mão de obra e a utilização correta dos recursos. Cabia, também, ser realista a respeito da quantidade de energia, tempo e dinheiro que se estava disposto a investir. Além disso, que não fosse esquecido e a bem dos resultados, que a aprendizagem seria lenta, já que alguns funcionários eram iniciantes no assunto.
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De cara, fiquei frustrada com a entrega do material e com o que me foi apresentado. Decidi que já passava da hora de conversar com o representante. Afinal, eu precisava saber o porquê de tão grande vacilo. Não consegui uma resposta que me convencesse. Não adiantou nada reclamar. Ele me informou que, de vez em quando, saía alguma coisa de fábrica com pequenos defeitos e que eu não me esquecesse de que tudo havia sido esclarecido desde o nosso primeiro encontro. Que eu me lembrasse de que havíamos feito um pacto, onde não caberia uma rescisão e, muito menos, uma devolução. Aquele era um contrato de risco, aceito e acordado por ambas as partes.
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Levei algum tempo no processo de reconhecimento de cada peça; gastei outro tanto correndo atrás de soluções que, se não efetivas, minimizariam os desajustes provocados pelo ineficiente controle de qualidade. Irritei-me algumas dezenas de vezes na busca de um entendimento daquelas instruções enigmáticas. Solicitei a colaboração de pessoas que eu não conhecia, mas que, graças a Deus, souberam me orientar. Trabalhamos juntos tentando desvendar os mistérios do manuscrito. Aplicamos medidas certeiras, alcançando sucesso em algumas empreitadas. Outras não deram certo e foi preciso recomeçar o raciocínio.
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Hoje, depois de muito tempo, inaugurou-se uma fase mais tranqüila. Daqui pra frente espero ter que cuidar apenas da manutenção. A máquina vem funcionando direitinho. De vez em quando aparece um ou outro problema. Por sorte, e com alguma paciência, descobri que dá pra ajeitar. Dou-lhe uma boa azeitada e assim ela vai indo. Só é preciso ficar alerta ao menor sinal de perigo. As engrenagens teimam em querer pifar.
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Já fiz as pazes com o tal representante. Juntei os pedaços espalhados, liquidei faturas, avaliei débitos e venho acertando as contas para recompor a unidade perdida entre o que ele me impôs e o que eu própria escolhi. Passei a acreditar em coincidências felizes e acasos salvadores, apesar de todo o meu empenho. Pelo menos, parece que os indicadores apontam para esse lado. Carola já está em fase final de acabamento.
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“Problemas não devem ser ignorados. Há sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever nossas estruturas, internas e externas: o que posso resolver? O que devo esquecer ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para enxergar outras coisas, coisas melhores?” (Lya Luft)